O relógio digital marcava 17h50 na quarta-feira 17 e o painel do plenário da Câmara dos Deputados exibia mais uma votação vitoriosa do governo. Caía a última das 14 emendas do PFL ao texto básico da reforma tributária, aprovado uma semana antes. Terminava a votação do primeiro turno. “Fizemos em oito meses o que o governo de Fernando Henrique Cardoso não conseguiu fazer em oito anos”, festejou o líder do PT na Câmara, Nelson Pellegrino (BA). O segundo turno já está marcado para esta quarta-feira 24. No mesmo dia, o senador Tião Viana (AC), líder do PT, lia em tempo recorde seu relatório da reforma da Previdência, aprovada no mês passado na Câmara e agora, na fase decisiva, tramitando no Senado. A rapidez se explicava: Tião rejeitou todas as 250 emendas e limitou-se a ler o texto vindo da Câmara. “Vou abrir espaço para negociar na comissão e no plenário, e ganhar tempo”, explica. As reformas vão reduzir despesas e aumentar a receita do governo, gerando recursos para investimentos.

O tempo é o centro da estratégia do Planalto e seu controle essencial para manter o rumo e assegurar o apoio ao projeto de Lula. Na quarta-feira em que acelerava a política no Congresso, o governo pisava fundo no pedal da economia, mantendo a queda dos juros: o Copom, pela quarta vez consecutiva, reduzia a taxa Selic, jogando-a para 20% ao ano, a menor desde setembro de 2002, quando a especulação sobre a possível eleição de Lula iniciou uma escalada dos juros. No mesmo dia, baixou medida provisória permitindo aos trabalhadores descontar, direto no contra-cheque, empréstimos bancários a juros baixos. Abriu também linha de financiamento de R$ 200 milhões, com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), para compras de eletrodomésticos pela população pobre. “Se o Brasil não tem dinheiro para crescer com rapidez, é preciso encontrar uma forma de colocar mais dinheiro em circulação. Queremos fazer com que o comércio volte a funcionar, produzir e gerar empregos”, afirmou o presidente Lula, no lançamento do programa. Dois dias antes da reunião do Copom, o ministro José Dirceu, da Casa Civil, durante a Conferência Internacional de Desenvolvimento Econômico e Justiça Social – promovida pelo Fórum das Américas, entidade presidida pelo empresário Mario Garnero –, cutucou o sistema bancário: “Nós vamos trazer a taxa de juros reais para um nível compatível com o crescimento do País. Irão os bancos reduzir as taxas de juros para capital de giro na mesma proporção em que caem os juros reais?” Dirceu cobrou que o sistema financeiro volte a financiar o consumo e a produção: “Cada um tem que dar uma cota ao País”, conclamou.

Trabalho duro – A mesma idéia de “cota” foi adaptada à política externa. Desta vez, com o governo Lula exigindo dos países ricos uma relação mais justa com o resto do mundo. Pela primeira vez num foro internacional, o Brasil falou, foi ouvido, liderou e foi decisivo para o resultado final de uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada na semana passada em Cancún, no México. A diplomacia brasileira arregaçou os punhos de renda e trabalhou duro para enfrentar os pesos pesados Estados Unidos e União Européia. No início, o grupo de 21 países em desenvolvimento, grandes produtores agrícolas, parecia o exército de Brancaleone, incapaz de resistir ao poder dos países mais ricos do mundo, que queriam impor a lei do mais forte, exigindo abertura de mercado sem mexer nos generosos subsídios aos seus agricultores. Mas a união demonstrada pelo grupo, reforçado pela adesão da Nigéria e da Indonésia, surpreendeu e a reunião terminou em um impasse total. “Somos mais de 60% da população mundial e mais de 65% da produção agrícola. Essa união dos fracos e dos médios, com objetivos políticos, éticos e morais legítimos, foi nossa força”, afirmou o chanceler brasileiro Celso Amorim, agraciado como líder e porta-voz do grupo. A prestigiosa revista britânica The Economist – que circula esta semana com instigante capa “O encantador resultado das negociações de Cancún” –, do alto de seu irônico e inteligente conservadorismo, diz que o G-21 se tornou uma “voz poderosa. Ele representa metade da população mundial e dois terços de seus agricultores. É bem organizado e profissional”. A revista diz ainda que o grupo deixou o México determinado a lutar junto daqui para a frente.

Na verdade, a posição do Brasil não era buscar o impasse, e sim obter um bom acordo de redução dos subsídios dados pelo Primeiro Mundo a seus agricultores, que chegam perto de US$ 1 bilhão/dia. “A proposta era técnica, muito bem fundamentada. Foi a primeira surpresa para Robert Zoellick, negociador-chefe americano, e Pascal Lamy, negociador-chefe europeu”, afirma o secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Otaviano Canuto. Os ricos insistiram em uma agenda ampla, incluindo compras governamentais,
serviços e transferência de tecnologia, além das questões agrícolas
e de tarifas. “As pressões foram violentas. O grupo se manteve firme
e eles tiveram que tentar um acordo. Mas, vieram as questões do algodão dos países africanos, dos investimentos e das compras governamentais e tudo voltou à estaca zero”, afirma Canuto. Para
Celso Amorim o G-21 acabou “trazendo o debate da justiça social das ruas para dentro da OMC”. Mesmo com o fracasso imposto aos ricos,
o Brasil não acredita em retaliações. “A era das imposições acabou. Todos precisamos da OMC. Mas ela vai ter uma outra cara daqui para
a frente. Nós mostramos, com nossa união, que é possível colocar os ricos na defensiva”, comemora Amorim.

Super Mercosul – Sem os temas que emperram a criação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), o País mergulhou de cabeça no fortalecimento do Mercosul. “Acredito que, em prazo curto, o Mercosul reunirá a grande maioria das nações sul-americanas”, afirmou Lula. Ainda não é oficial, mas a data de 1º de janeiro de 2004 já é vista como um marco da associação dos cinco países do Grupo Andino (Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia) ao bloco original do Brasil. Esse “Super Mercosul” mostrará músculos respeitáveis: um PIB de US$ 1,2 trilhão (cerca de R$ 3 trilhões) e uma população de 370 milhões – o terceiro maior bloco econômico do mundo, logo atrás do Nafta e da União Européia. O Brasil e seus sócios também aceleram a formação de novos blocos. O G-3, com a África do Sul e a Índia, já na fase do acordo de preferências tarifárias, atrai a atenção da Rússia e da China. Mesmo com o impasse de Cancún, o Mercosul negocia com a União Européia um acordo de livre comércio semelhante ao da Alca. Especialistas indicam que a defesa européia aos subsídios não deve durar muito. A entrada da Polônia na UE atrapalha tudo. País predominantemente agrícola, tem mais camponeses do que toda a Europa junta. Estender a esse pessoal as mesmas vantagens quebraria os países mais ricos. Como na Europa o tratamento tem que ser igual para todos, os subsídios estão com os dias contados.

Relógio controlado no front externo da diplomacia, o Brasil adianta os ponteiros na trincheira interna da política. Apesar do PFL, que obstruiu votações e levou sessões madrugada adentro, o Planalto manteve o leme firme. “Na reforma tributária, o fundamental era evitar prejuízos à União, garantindo a sobrevivência da CPMF e da DRU (Desvinculação de Receitas da União), e dar ganhos aos Estados, com a repartição da Cide (imposto sobre combustíveis) e a criação do Fundo de Desoneração de Exportações. Isso foi garantido. O resto a gente discute depois”, antecipa Romero Jucá (PMDB-RR), provável relator da reforma no Senado. O PFL, na verdade, se enrolou na sua funda divisão interna, com vários núcleos de poder mais ou menos distantes do Planalto. Na Câmara, o líder José Carlos Aleluia (BA) bate no governo e o vice-líder Antônio Carlos Magalhães Neto (BA) afaga. O mesmo acontece no Senado, onde ACM avô diverge do catarinense Jorge Bornhausen no apoio a Lula. Isso ficou claro na discussão da chamada “emenda Ford”, que altera o prazo de validade na cobrança do ICMS nos Estados. A Bahia dos ACMs queria uma exceção para beneficiar a fábrica de automóveis que o PT gaúcho perdeu para o PFL baiano, em 1998. Aleluia acha que isso comprometia o partido com o Planalto. Na dúvida, a questão passou da Câmara para o Senado.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Mas tem gente achando que atraso na votação, se houve, foi culpa do próprio PT. Líderes reclamaram muito do presidente João Paulo Cunha (SP) pela tolerância com o PFL. “O João Paulo pensa 24 horas na reeleição”, destila um governista. Discretamente, o Planalto trabalha com o melhor dos mundos: a sincronia perfeita com o Congresso, pela reeleição em 2005 dos atuais presidentes da Câmara e do Senado, José Sarney (PMDB-AP). “Meu Deus, temos que acabar com a reeleição. Acabou com o País e agora está acabando
com o Congresso”, reclama, na surdina, um vice-líder aliado do Planalto. Na busca do consenso antecipado, João Paulo chegou a brincar com Aleluia diante de jornalistas: “Estou sendo acusado de ser homem do PFL…” Aleluia rebateu na hora: “V. Exa. será bem-vindo ao partido. ” João Paulo se defende: “Cumpro o regimento. A obstrução é democrática, o PT sempre fez isso.” Em outubro, nova hora decisiva no relógio
do Planalto: a entrada do PMDB no Ministério. Na terça-feira 16, um grupo de senadores festejou o aniversário do líder Renan Calheiros (AL), favorito a uma das vagas na Esplanada. Na hora de soprar a velinha,
o vivido Sarney formulou o desejo dos presentes: “Renan… ministro!” Todo mundo riu. O partido, a sério, quer um ministério de peso para
o senador de Alagoas, algo como a Educação. O titular Cristovam Buarque está com a popularidade em baixa no Planalto. Depois de dizer
ao jornal El País, da Espanha, ser necessário definir o “lulismo”, Cristovam fechou a semana na Academia Brasileira de Letras repetindo o imortal Eduardo Portella, seu anfitrião: “Eu também não sou, estou ministro.” Parece estar trabalhando contra o relógio.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias