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MUDANÇA
Lampedusa já foi um destino concorrido, mas agora só recebe
imigrantes dispostos a tudo para viver o sonho europeu

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Séculos de civilização estão separados por uma travessia de apenas 120 quilômetros. Em uma ponta, na costa mediterrânea da Tunísia e da Líbia, a miséria brutal, abrasada por guerras e revoltas. Na outra ponta, a meio caminho da Itália, a cinematográfica ilha de Lampedusa, porta de ingresso ao paraíso da União Europeia. Para cruzar esses dois mundos pelo menos 27 mil pessoas, nos últimos quatro meses, já arriscaram suas vidas em fétidos porões de navios ou barcaças mambembes. Pelo menos 1,4 mil morreram na travessia, em viagens perigosas que podem durar até cinco dias. Os refugiados africanos, que chegam à ilha com fome, frio e sede, multiplicaram por mais de cinco a população de Lampedusa, causando um colapso em serviços básicos como a coleta de lixo. Milhares de resíduos plásticos são jogados todos os dias no mar pelos imigrantes e recantos turísticos viraram lixões. No único centro de acolhimento na ilha, com capacidade para apenas 820 pessoas, já não cabe mais ninguém. Mais de quatro mil estão dormindo ao ar livre, sem a mínima condição de higiene.

A ilha italiana herdou o nome do primeiro príncipe de Lampedusa, Giulio Tomasi, que no século XV tomou posse daqueles 20 km² de pedra, no arquipélago das Pelágeas. Nobre siciliano, Giulio é antepassado do famoso escritor Tomasi di Lampedusa, criador de um lema do conservadorismo que parece ter sido feito sob medida para os atuais dirigentes da União Europeia: “Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.” Variações desta frase, saída de “O Leopardo”, livro escrito por Lampedusa em 1958, já serviram para explicar muitas reformas mundo afora. Agora o lema cai como luva de pelica para o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, e para o presidente francês, Nicolas Sarkozy. Para frear a onda migratória, agora facilitada e incentivada pelo ex-aliado Muamar Kadafi, os chefes dos dois países mais procurados pelos refugiados africanos querem uma reforma no Tratado de Schengen. A convenção, firmada em 1985, permite a livre circulação de pessoas entre os países-membros da União Europeia. A Alemanha já se mostrou favorável à mudança. Mas, para muitos analistas internacionais, a proposta é polêmica e geraria um retrocesso ao tratado.

Enquanto burocratas discutem o que fazer em confortáveis salões de Roma, Paris e Berlim, a pequena ilhota siciliana tenta traçar uma estratégia para enfrentar o verão que se aproxima. Por conta do clima seco, com raras tempestades, que caracteriza essa estação do ano no Mediterrâneo, as condições de navegação tornam-se mais tranquilas para a travessia. Por isso, a tendência é de que o número de imigrantes cresça ainda mais entre junho e agosto, tornando a bucólica ilha ainda mais inóspita para seus próprios moradores.

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LOTAÇÃO
Mais de 27 mil pessoas já cruzaram os 120 quilômetros
que separam a ilha da costa africana desde o início do ano

Desde o início do ano, a Lampedusa se tornou um campo de refugiados ao ar livre, com imigrantes apinhados em todos os cantos. A nova onda de imigração teve início com a revolta popular na Tunísia e agravou-se com a guerra civil na Líbia. Com o apoio da Otan aos rebeldes, o ditador Muamar Kadafi quebrou um acordo que mantinha com a Itália para impedir que a Líbia se tornasse um corredor livre para imigrantes de outros países africanos. Kadafi não só relaxou o controle de fronteiras, como passou a incentivar a travessia, que agora também é feita pelos próprios líbios.

Com medo de epidemias, os moradores de Lampedusa evitam sair de suas casas e reclamam que perderam o direito à liberdade. Muitos estão sem poder exercer suas atividades já que a economia local vive primordialmente da pesca e do turismo. “Nós e os imigrantes somos vítimas de uma mesma tragédia”, disse às agências de notícias Rosetta Greco, dona de um pequeno hotel em Lampedusa. “Estamos sofrendo essa situação desumana que está nos tirando a dignidade e a liberdade.”

Enquanto os moradores esperam reaver sua pacata rotina, os imigrantes ilegais sofrem com a falta de infraestrutura da ilha para receber tantas pessoas em condições tão precárias ao mesmo tempo. “Aqui, o sofrimento continua”, diz o coordenador da ONG “Médicos sem Fronteiras” na Itália, Rolando Magnano. “Falta tudo para os imigrantes e estamos ameaçados de enfrentar uma crise humanitária.”

O governo italiano tem demonstrado clara má vontade em conduzir o problema e o ministro das Relações Exteriores, Franco Frattini, chegou a insinuar que o problema é mais francês do que italiano. “Cerca de 80% dos imigrantes falam francês e têm amigos na França”, disse ele. Na semana passada a crise se ampliou quando foram divulgadas informações que autoridades marítimas europeias simplesmente teriam deixado à deriva um barco repleto de imigrantes líbios no início de abril. A embarcação teve problemas causados por uma pane seca e ficou em alto-mar durante 16 dias. Sem água e sem comida, 61pessoas morreram. Para piorar, a ONU confirmou ainda que na sexta-feira 6 o naufrágio de um barco com 600 imigrantes matou quase todos os seus ocupantes quando se preparava para iniciar a travessia entre Trípoli, na Líbia, e Lampedusa. Com o verão se aproximando, a famosa frase de Tomasi di Lampedusa precisará ser colocada em prática, o mais rápido possível, para que aquela que já foi considerada uma das jóias do Mediterrâneo não se transforme no símbolo de uma tragédia anunciada.

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