Ao menos duas vezes o mundo da ópera foi abalado pela figura da soprano neo-zelandeza Kiri Te Kanawa, 59 anos. Primeiro, nos idos dos anos 1970, quando irrompeu soberba em cena como a Condessa nas Bodas de Fígaro, de Mozart. Bem mais tarde, já com o título de Dame Commander do Império Britânico, chacoalhou conservadores ao afirmar com toda irreverência e uma pontinha de provocação que achava ópera um gênero muito sisudo. Preferiria ser uma Tina Turner. Outra integrante do grupo das divas que abriu mão dos arroubos de prima-dona, usando o registro vocal privilegiado tanto para os mais difíceis papéis líricos quanto para canções populares, é a americana naturalizada sueca Barbara Hendricks, 54 anos. Longe das cortinas de veludo e dos ouropéis de palcos famosos, esta Embaixatriz Especial da Comissão das Nações Unidas para os Refugiados já pôde ser vista soltando seus trinados puríssimos até em meio a bombas num concerto beneficente em
Sarajevo, paramentada de capacete e colete à prova de bala. Agora,
os brasileiros poderão ouvir as duas cantoras em oportunidade rara. Na terça-feira 23 e na quarta 24, Barbara Hendricks apresenta-se dentro
da série Concertos BankBoston, em São Paulo, acompanhada de um trio sueco com piano, violino e violoncelo. Também na terça-feira 23, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e no domingo 28, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, Kiri Te Kanawa assume o centro do palco
do Avon Women in Concert 2003, junto com a Orquestra Filarmônica
de Mulheres, sob a regência de Cláudia Feres.

É a terceira vez que Kiri Te Kanawa se apresenta no Brasil. Barbara Hendricks é outra habitué. Já esteve aqui em cinco outras ocasiões.
Com mais de 30 anos de carreira e dona de vozes ainda poderosas, elas sempre surpreendem no repertório. Kiri, que não gosta de revelar com antecedência os números de seus concertos, adiantou para ISTOÉ sua seleção. “Vou cantar algumas belas árias clássicas dentre as minhas favoritas de Puccini, Charpentier e Cilea, junto a algumas conhecidas canções populares de famosos musicais da Broadway, como West side story e Show boat.” Como é comum nos seus recitais, ao final apresenta alguma canção maori. Filha de mãe branca e pai maori, ela tem se empenhado em divulgar a música da Nova Zelândia. Até já gravou um
CD inteiramente dedicado a ela. “As canções maori fazem parte de minha herança. Cresci ouvindo estas músicas e me sinto muito orgulhosa do disco estar provocando um efeito tão positivo na Nova Zelândia.”

Na juventude, contudo, foi interpretando em boates standards de Irving Berlin ou Cole Porter que Kiri se iniciou na vida artística até partir para Londres e estudar no famoso London Opera Center. “Continuo a interpretar canções populares no palco, como as composições de Andrew Lloyd Weber, mas no momento não tenho planos de gravar um novo trabalho do gênero”, disse. Intérprete mozartiana por excelência, Kiri considera o autor de Don Giovanni seu preferido. “Sua música casa perfeitamente com minha voz. Ao longo de minha carreira, ele tem sido meu guia e tutor.” Sobre o compositor carioca Heitor Villa-Lobos, do qual gravou as Bachianas brasileiras nº 5, a neo-zelandesa destaca o “estilo inconfundível”, entre outras qualidades. “É um compositor maravilhoso, que admiro bastante.”

Semelhante opinião tem Barbara Hendricks, cujo vasto repertório também reserva um cantinho às Bachianas. “Villa-Lobos traz uma cor brasileiríssima, melodias fenomenais, prova de que a experiência humana é universal quando traduzida pela sensibilidade”, afirmou ela a ISTOÉ. Não será desta vez, contudo, que o público de São Paulo ouvirá o clássico da música erudita brasileira na voz da soprano. Com um concerto basicamente voltado para as lieder – canções tradicionalmente baseadas em poemas em alemão, geralmente acompanhadas de piano –, Barbara fechou seu programa em Beethoven, Brahms, Schubert e Shostakovich. De Beethoven interpretará Schottische lieder, compostas sob encomenda de um empresário musical escocês que queria divulgar as músicas de sua terra pelos salões da corte britânica; e Volkslieder op.108, que reúne canções populares de vários países. O maior destaque, porém, são as cinco lieder de Schubert feitas sobre um conjunto de poemas de Goethe.

Filha de um pastor protestante de Stephens, Arkansas, sul dos Estados Unidos, Barbara aprendeu a cantar em coros de igreja. Sua paixão pelos spirituals, cantos religiosos, foram registrados nos CDs Barbara Hendricks sings spirituals with Dmitri Alexeev e Spirituals: give me Jesus. “Os spirituals foram o primeiro tipo de música que eu ouvi na vida. Portanto estão dentro da minha alma e das minhas emoções”, diz a cantora, que também se dedica ao repertório jazzístico. “Meu próximo trabalho popular será com canções de Cole Porter. Ele é um melodista insuperável.” Mas a diva negra, que antes de ser soprano formou-se em química e matemática, compartilha com Kiri a predileção por Mozart. “Ele é a minha mais constante companhia. Sua música é divina, no sentido mais estrito. Vem de Deus.” E, diga-se, fala por meio de vozes não menos celestiais.