Muitos anos antes de as caravelas portuguesas fincarem suas âncoras por aqui, o Brasil estava longe de ser um paraíso tropical inabitado. Bem no coração da Amazônia, em Mato Grosso, onde hoje convivem 14 tribos indígenas no Parque Nacional do Xingu, havia uma civilização com avançado conhecimento de engenharia. As evidências arqueológicas, reveladas na semana passada, mostraram vestígios de praças, ruas e pontes construídas por uma sociedade com cerca de cinco mil habitantes. Durante pelo menos 250 anos, esses povos resistiram a toda sorte de ameaças, de malária e febre amarela a picadas de cobra e plantas venenosas. Para se curar, usavam infusões de ervas e poções feitas pelos pajés com ingredientes quase sempre secretos. Só 350 mil índios, ou 0,2% da população brasileira, resistiram às armas de fogo, ao domínio dos colonizadores e às doenças européias.

A população nativa diminuiu, mas a pilhagem das riquezas naturais brasileiras já dura 500 anos. Os colonizadores europeus que saqueavam as colônias deram lugar aos piratas disfarçados de turistas, pesquisadores ou missionários. Seu objetivo continua o mesmo: apropriar-se das riquezas da maior biodiversidade do mundo, úteis na produção de alimentos, remédios e cosméticos. A grilagem evoluiu a reboque da indústria farmacêutica e da biotecnologia. Um quarto dos atuais medicamentos industrializados é derivado de plantas, o que representa um mercado mundial de US$ 14 bilhões ao ano, sendo
US$ 124 milhões só no Brasil.

Frutas tropicais – O País amarga um prejuízo diário de US$ 16 milhões com a biopirataria, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Há casos emblemáticos como o pau-brasil, a seringueira ou a fruta do bibiri, registrada pelo laboratório canadense Biolink, apesar de usada há gerações como anticoncepcional pelos índios uapixanas, de Rondônia. Uma empresa japonesa deixou mais evidente essa vulnerabilidade ao registrar como seus os nomes de frutas nacionais típicas como cupuaçu e acerola. O caso mais famoso, porém, é o do professor da faculdade de medicina de Ribeirão Preto, Sérgio Ferreira, que descobriu no veneno da jararaca uma substância capaz de controlar a pressão arterial. Sem dinheiro para tocar as pesquisas, ele aceitou uma parceria com o laboratório americano Bristol-Myers Squibb. Em troca de recursos, a empresa registrou a patente do princípio ativo Captopril, um mercado que gera US$ 2,5 milhões ao ano em royalties, e o Brasil também tem que pagar.

Não há páreo no mundo para a riqueza das florestas, pradarias e
savanas brasileiras, que abrigam duas em cada cinco espécies de
plantas e animais do planeta. Aqui vivem 55 espécies de primatas,
dois quintos das aves e um décimo dos anfíbios e mamíferos do mundo. O grande dilema da exploração dos recursos naturais é o desconhecimento. A ciência já esquadrinhou quase 1,8 milhão de espécies de um total que pode variar entre cinco e 30 milhões. Por isso, a biopirataria muitas vezes passa despercebida. Na maioria dos casos, ela é reflexo da falta de fiscalização, de controle e de uma legislação que proteja a propriedade genética das espécies nativas.

O carro-chefe da exploração predatória é a madeira tropical mais nobre e valiosa do mundo, o mogno. Batizada de ouro verde por seu alto valor comercial, ela é vendida a US$ 1,4 mil por tora. Entre 1971 e 2001 foram extraídos 2,5 milhões de árvores. Dois terços seguiram para os EUA e a Inglaterra. Tivessem percorrido os caminhos legais, esse comércio poderia gerar quase US$ 4 bilhões em divisas. No domingo 21, Dia da Árvore, será a primeira vez em 40 anos, desde que começou sua exploração intensa, que o mogno dá sinais de recuperação.

A devastação foi tanta que o governo brasileiro decretou uma moratória no comércio de mogno em 2001. Madeira rara, resistente, que dura séculos sem mudar de cor nem deformar, o mogno não tem paralelo na natureza. Foi tão explorado que entrou na lista internacional de espécies ameaçadas de extinção. A partir de novembro, começam a valer os novos critérios para sua exploração controlada. Serão adotados certos cuidados para deixar mudas e toras suficientes para as futuras gerações. As práticas do bom manejo também serão acompanhadas por cientistas e fiscais. “O mogno enfim saiu da UTI e está em quarentena”, compara Adalberto Veríssimo, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Ele percorreu as florestas do Acre, Rondônia, Mato Grosso e sul do Pará para elaborar o mais completo raio-x da exploração madeireira do País. “Quem apostou na impunidade perdeu dinheiro. Só vai ficar nesse negócio quem quiser trabalhar a sério”, diz Veríssimo.

Banco de dados – O governo também promete fazer um controle mais rigoroso e fiscalizar, por satélite, a retirada das madeiras da floresta. “Temos que fechar a porta da ilegalidade, com mais punição, e usar estímulos para abrir a porta do uso sustentável”, explica João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente. Do jeito como está, o Brasil joga todos na clandestinidade, inclusive os cientistas que buscam aprimorar o conhecimento para ajudar no trabalho de preservação. “Estamos sentados sobre um patrimônio riquíssimo, mas a falta de regras rígidas impede o uso adequado da nossa biodiversidade”, afirma Capobianco.

O atual governo prepara um banco de dados com o nome científico e popular das várias espécies
nativas. Disponível na internet, ele poderia coibir iniciativas como
a da empresa japonesa Asahi Foods, que abocanhou as marcas
cupuaçu e acerola. Não adianta nem reclamar direitos na Justiça
porque a maracutaia esconde uma briga de gigantes. Os países
ricos relutam em reconhecer o conhecimento tradicional de povos nativos como propriedade intelectual. Em compensação, defendem
as patentes sobre genes e princípios ativos encontrados na natureza.
Na prática, vale quem for mais rápido no gatilho em registrar
marcas e patentes no Exterior.

Nossos recursos genéticos são subutilizados, as regras esquizofrênicas amarram a pesquisa nacional e abrem brechas para interesses menos legítimos. É impossível sobrevoar a floresta e reconhecer do alto quais plantas têm efeito terapêutico. O único jeito de aprofundar o conhecimento científico é se aproximar das populações tradicionais,
que quase nunca são remuneradas. A ministra do Meio Ambiente,
Marina Silva, autora do primeiro projeto de lei de combate à biopirataria, há oito anos engavetado no Congresso, promete enviar um projeto
de lei para substituir a atual medida provisória que rege o setor,
no qual propõe penas para a biogrilagem. “A legislação é essencial,
mas a conscientização da sociedade é fundamental para impedir
esse crime duplo, que rouba nossas riquezas e impede nosso desenvolvimento”, diz Marina.

Pela legislação atual, biopirataria não é crime. Por isso, os 29 americanos, holandeses, suíços e alemães presos nos últimos dez anos pela Polícia Federal somente no Amazonas foram enquadrados na lei que trata do transporte ilegal de animais e plantas e, logo depois, liberados sob pagamento de fiança. Sabendo da facilidade, os biopiratas estão mais ousados e sofisticados. A PF e o Ibama já apreenderam com falsos turistas mapas detalhados da Amazônia elaborados por satélites americanos, aparelhagem para medir a acidez da água e substâncias que adormecem animais embalados para “exportação”.

Tráfico – Para combater tanta sofisticação, a PF criou a divisão de repressão aos crimes ambientais, que coordenará o trabalho em delegacias especializadas. “Este é o setor mais sofisticado do crime organizado e para combatê-lo temos que conhecer o assunto”, avisa o delegado e biólogo Jorge Pontes. A PF deu o nome do maior pirata da história – Drake – a uma operação em 11 Estados para tentar impedir o tráfico de animais e a saída de material genético pelas fronteiras. A dobradinha biopirataria-tráfico de animais é a terceira maior atividade ilícita do mundo, perdendo só para o tráfico de drogas e de armas.

Os índios também entraram na briga. Desde fevereiro, o Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual registra os conhecimentos tradicionais dos pajés. Integrado por advogados e sociólogos índios
e pajés, o instituto vai tentar o reconhecimento internacional
pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual. “Nosso
saber deve ser respeitado para que as comunidades indígenas
se beneficiem de tradições seculares”, defende Marcos Terena,
um dos criadores do instituto.

Campanhas de conscientização e repressão policial são fundamentais, mas não suficientes. Até porque o biopirata conta com muitas saídas e com a fragilidade dos acordos internacionais ainda não regulamentados. A solução definitiva apontada pela Associação Brasileira de Empresas de Biotecnologia é a aprovação de uma legislação para regulamentar a bioprospecção, a pesquisa científica e o intercâmbio de material genético entre cientistas de outros países. “Os pesquisadores brasileiros ou estrangeiros terão que se submeter a contratos meticulosos para que o Brasil possa se beneficiar da sua biodiversidade”, argumenta Antônio Paes de Carvalho, presidente da associação.

O interesse dos estrangeiros é tanto que há 20 anos uma indústria suíça controla a Pentapharm, um dos mais importantes serpentários do País, localizado em Uberlândia, Minas Gerais. Ali se criam em cativeiro as cobras jararacuçus, uma espécie do grupo das jararacas. Toda a produção de veneno segue para a Suíça, que o transforma num medicamento anticoagulante. Para espanto dos desavisados, o negócio é legal e tem permissão de todos os órgãos governamentais para exportar o veneno das cobras tupiniquins.

Enquanto a solução não vem, Francisco José Abreu Matos, da Universidade Federal do Ceará, registrou 700 espécies de plantas conhecidas por suas propriedades medicinais. Ele avaliou a toxicidade
e a eficácia terapêutica de 70 espécies e reuniu os dados no livro Farmácia viva. Com isso, garante Matos, é possível baratear o
custo dos medicamentos. “Há uma grande dificuldade para as plantas brasileiras se tornarem fonte de renda e as pesquisas acabam entregando o ouro ao bandido”, acrescenta.

Apesar das brechas, o Brasil esbanja competência. Na semana passada, fez jus à fama de ser um centro de excelência em samba, futebol e genoma. Divulgou o sequenciamento genético do parasita Schistosoma mansoni, que provoca a esquistossomose e afeta dez milhões de brasileiros e 200 milhões de pessoas em 74 países. O estudo reuniu
36 pesquisadores liderados por Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto
de Química da Universidade de São Paulo. “O sequenciamento vai
permitir o desenvolvimento de uma vacina dentro de cinco a dez anos”, explica. O Instituto Butantan já trabalha num projeto piloto para testar vacinas usando os genes identificados. Financiadora do estudo, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) solicitou um pedido de patente internacional para os genes mais promissores. “As patentes atraem parcerias comerciais e evitam que
as informações sejam apropriadas indevidamente”, diz José Fernando Perez, diretor científico da Fapesp.

Antibiótico – Primeiro esforço nacional na área de genômica, outra pesquisa mostrou resultados. O sequenciamento da bactéria Chromobacterium violaceum reuniu 25 laboratórios e 200 cientistas de 15 Estados, de Manaus a Porto Alegre. Durante um ano, eles analisaram os genes da bactéria presente no rio Negro. Além de sintetizar antibióticos e remédios contra tumores, a descoberta pode levar à criação de plásticos biodegradáveis e à redução de poluição em áreas de garimpo.

Na segunda-feira 15 foi a vez de a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) exibir sua conquista, a bezerra Lenda,
primeiro clone de um animal morto. “Ela é simplesmente perfeita”,
gaba-se Rodolfo Rumpf, coordenador da equipe. Lenda abre a possibilidade de clonar espécies ameaçadas de extinção. “É uma
forma de a ciência compensar o desequilíbrio que o próprio ser
humano provoca”, promete Rumpf.