Juíza do Tribunal Penal Internacional defende a entrada dos EUA e o acesso aos documentos da guerrilha do Araguaia pelos familiares das vítimas

Simpática e brincalhona, é difícil imaginar que essa inveterada fã de música popular brasileira ocupa um dos cargos mais sérios e importantes da mais alta instância jurídica internacional. A brasileira Sylvia Steiner, 50 anos, é a única a representar o País no Tribunal Penal Internacional (TPI), instituído em 1998 pelo Tratado de Roma para julgar crimes de guerra e contra a humanidade. Mas o histórico desta ex-militante de direitos humanos falou mais alto. Em sua rápida passagem por São Paulo, em meio à arrumação de malas antes de partir para Haia (Holanda), onde está há dois meses, Sylvia concedeu esta entrevista a ISTOÉ. A juíza do TPI afirmou que o fortalecimento das organizações internacionais, como
as Nações Unidas, é que dará o equilíbrio de forças no planeta. Como
ex-militante do grupo Tortura Nunca Mais, Sylvia disse que se realmente o governo brasileiro estiver impedindo o acesso aos documentos pelos familiares das vítimas da guerrilha do Araguaia, essa decisão deveria
ser revista. E, antes de partir às pressas, avisou os amigos que irão visitá-la que levará em frente a idéia de abrir um barzinho para colorir
a cinzenta cidade holandesa.

ISTOÉ – Os Estados Unidos, que são a única superpotência remanescente, se recusam a integrar o Tribunal Penal Internacional (TPI). Existe alguma possibilidade de que as atrocidades da guerra do Iraque sejam julgadas por esta corte? Ou pelo menos os britânicos, uma vez que o Reino Unido integra o TPI?
Sylvia Steiner

Se ficar demonstrado que houve prática de crime de guerra, em tese, os soldados britânicos poderiam ser julgados pelo TPI. Mas é necessário explicar que o TPI é complementar, ou seja, não é um tribunal que vem para substituir os já existentes nos países. Para que os soldados britânicos fossem julgados pelo TPI seria antes necessário que o Reino Unido se recusasse a fazê-lo. Ou que o Conselho de Segurança da ONU encaminhasse os processos para o TPI. A guerra em si, do ponto de vista técnico, é claro, embora executada sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, não é crime. Os crimes de guerra são os excessos ocorridos nos conflitos armados. Nesse caso hipotético, para que houvesse julgamento no TPI seria necessário enviar esses relatórios ao promotor, o argentino Luis Moreno Ocampo, depois que os tribunais britânicos tivessem se recusado a investigar os casos. Seria necessária a constatação de que houve crime contra a humanidade. Ultrapassadas essas fases, o promotor poderia iniciar uma investigação contra os soldados britânicos acusados.
 

ISTOÉ – Mas o fato de países importantes como os Estados Unidos, a Rússia e a China não fazerem parte do TPI não esvazia a legitimidade dessa corte?
Sylvia Steiner

Existem duas possibilidades para o julgamento de cidadãos de países que não tenham ratificado o Estatuto de Roma (estabelecido em 1998 pelas Nações Unidas para a instituição do TPI). O Conselho de Segurança pode instalar os chamados tribunais ad hoc, como fez nos casos da Bósnia e de Ruanda. A segunda opção é o Conselho remeter os casos para o TPI, e aí não importa se esses países fazem parte ou não do tribunal. EUA, China e Rússia e qualquer outro Estado podem ter seus cidadãos julgados pelo TPI no momento em que a ONU remeter o caso para a corte internacional. A credibilidade do TPI vai se afirmar na medida em que ele comece a operar do ponto de vista judicial. O TPI não tem só a função punitiva, mas também a da reparação das vítimas. Sob o ponto de vista da vítima, não importa quem tenha sido o autor. É tão necessário julgar casos de vítimas dos menores países africanos como de países europeus. O problema da nacionalidade do autor não é o mais relevante, desde que se consiga trazer a reparação às vítimas. É evidente que seria muito importante que EUA, Rússia e China, nações de peso no cenário mundial, participassem. Mas, mesmo que eles não integrem o TPI, o tribunal não perde sua legitimidade.

ISTOÉ – Na sua opinião, por que os EUA, um país com tradição na defesa dos direitos humanos, se recusam a integrar o TPI?
Sylvia Steiner

Os EUA tradicionalmente não aceitam nem a Carta americana sobre direitos humanos. Eu considero isso como mais uma tendência isolacionista dos americanos, de estarem muito fechados dentro de seu próprio sistema. Na medida em que eles exercem um papel hegemônico, seria importante sua participação na corte. Para os EUA, até por conta de sua tradição democrática, não é contraditório não fazer parte do TPI. Eles não se vêem como violadores dos direitos humanos. E o próprio conceito de direitos humanos vem sofrendo amplas mudanças nos últimos dez anos. Um exemplo simples disso refere-se às questões ambientais. Nota-se hoje que a proteção do meio ambiente, por exemplo, não se restringe a um único país. A necessidade de que os países atuem conjuntamente para a melhoria das condições de vida de toda a humanidade é uma coisa nova. É por isso que todos os países, inclusive os EUA, vão perceber que não adianta apenas ter uma política interna de direitos humanos, porque, afinal, esses direitos extrapolam fronteiras. Pela primeira vez em sua história, os EUA sofreram um episódio dramático internacional dentro de seu território (o 11 de Setembro). E isso demonstra que ninguém consegue viver absolutamente isolado do resto do mundo. A necessidade de se atuar junto a outros Estados é uma tendência natural, a evolução de um processo. Meu otimismo não é ingênuo. O papel de punição da ONU tem apenas dez anos. E a tendência do TPI é que ele cresça. Mais importante do que aderir à corte é que haja julgamentos internos nesses países de pessoas acusadas de crimes contra a humanidade. A importância de um tribunal como o TPI não é apenas pela sua própria existência, mas pela obrigação dos Estados de modificarem suas legislações internas. A proposta é que esses criminosos venham a ser julgados e nunca mais aconteçam casos como o de Idi Amin Dada (ex-ditador de Uganda), responsável por uma das mais horrendas situações contra a humanidade, que, depois de deixar o poder, nunca prestou contas e acabou falecendo. Esse também é um princípio pela jurisdição universal de que os ditadores, os que cometem crimes contra a humanidade, nunca encontrem um lugar no mundo em que possam se esconder e ficar em paz.
 

ISTOÉ – Poderia o ditador Fidel Castro passar pelo julgamento do TPI? .
Sylvia Steiner

Voltamos ao caso dos soldados britânicos no Iraque. Primeiro, seria necessária a verificação de práticas de crimes descritos no Estatuto de Roma. Segundo, se o próprio Estado (Cuba, no caso) for capaz de julgá-los ou não. Terceiro, se por força de resolução do Conselho de Segurança da ONU se entender a necessidade de se levar ao TPI. E quarto, o TPI não tem efeito retroativo. São tantos os argumentos nesse sentido que esta hipótese não é nem cogitada

ISTOÉ – O presidente argentino Néstor Kirchner revogou um decreto que vetava a extradição de militares e anulou as leis de Obediência Devida e Ponto Final que isentavam de processo vários militares da ditadura. Como vê isso?
Sylvia Steiner

Essa revogação de leis que beneficiavam militares acusados de violações é um dos fatores mais importantes que aconteceram em termos de política de direitos humanos na América Latina. Um passo dado no sentido de acompanhar a normativa internacional, na medida em que não reconhece anistia em casos de graves violações aos direitos humanos. O próprio Estatuto de Roma, que expressa os avanços do direito internacional dos direitos humanos, é expresso quanto ao não-reconhecimento de qualquer forma de anistia, bem como quanto ao não-reconhecimento da chamada obediência devida.

ISTOÉ – Como vê a decisão do governo Lula em impedir que os familiares das vítimas da guerrilha do Araguaia tenham acesso aos documentos sobre seu paradeiro?
Sylvia Steiner

Trabalhei muitos anos com o grupo Tortura Nunca Mais. Essa luta não é sobre o paradeiro dos corpos, mas a forma como tudo aconteceu nos tempos da ditadura. Isso é um direito inalienável dos familiares há muitos anos. Se realmente o governo Lula estiver negando o acesso dos arquivos aos familiares, eu gostaria que sua posição fosse revista. Falo isso em homenagem às famílias das vítimas e em especial à trajetória de uma pessoa que conheci de perto, a falecida Helena Pereira dos Santos, que foi presidente da entidade. O filho dessa senhora foi morto no Araguaia e até o último dia de sua vida ela queria o direito de enterrá-lo. Ela queria que ele tivesse um túmulo para levar-lhe flores.

ISTOÉ – O avanço de tribunais como o TPI não é contraditório em um mundo que caminha para a política do unilateralismo da nação mais poderosa?
Sylvia Steiner

Não é contraditório. A gente tem que separar o que é o sistema jurídico do que é o sistema de relação de poder. Mesmo internamente essas coisas estão sempre presentes. De um lado,
você tem uma situação de fato que decorre da situação de poder. Paralelamente a isso, existe o sistema jurídico, que deve ser cada
vez mais fortalecido para que as relações de poder sejam equilibradas. Agora, nem sempre o poder poderá ser regulado porque isso é da natureza humana. Desde 1997, existe a lei contra a tortura no Brasil.
Foi uma luta insana até conseguirmos finalmente a edição dessa lei.
Essa lei é boa e segue o modelo de duas convenções sobre a tortura. Isso não quer dizer que a lei por si só vá fazer com que a tortura deixe de existir. Agora, dizer que já que continua a tortura para que ter a lei, isso sim seria contraditório. A lei é necessária, o sistema repressivo é necessário, o sistema punitivo é necessário, mas a gente também não pode ser ingênuo a ponto de pensar que o sistema jurídico condiciona
as relações de poder. O que acontece no mundo é isso. E é por isso
que o sistema normativo internacional tem que se fortalecer, para contrabalançar as relações de poder.

ISTOÉ – Uma vez a sra. disse que não existe lei suficiente para controlar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro no Brasil. Poderia explicar melhor?
Sylvia Steiner

A questão do narcotráfico e da lavagem de dinheiro no
Brasil é mais uma dessas questões que não podem ser resolvidas
apenas com legislação interna. Existe uma legislação que não cobre a situação, porque ela extrapola fronteiras. A lei tem que ser adaptada para atingir todo o universo do tráfico e da lavagem de dinheiro. A lei
de entorpecentes no País é de 1976. Ela sofreu algumas modificações
na lei de crimes hediondos em 1991 e outras no final dos anos 90. Mas
o problema é que o crime organizado anda e se sofistica muito mais rápido do que a nossa capacidade de adaptar a legislação. Quando
a gente consegue adaptar, eles (os infratores) já estão com novas modalidades. Por isso é necessário uma legislação internacional mais forte, mais severa e mais eficiente, porque não dá mais para controlar essa situação em nível interno. Várias vezes foi discutida a possibilidade da criação de tribunais internacionais para julgar esse tipo de crime. Talvez não seja essa a solução, mas um passo adiante, na medida em que são crimes chamados transnacionais.

ISTOÉ – Qual a importância de o Brasil ter uma representante no TPI?
Sylvia Steiner

Demonstra a importância da bandeira brasileira. A eleição, pela Assembléia dos Estados-Partes, de um juiz brasileiro demonstra que o País goza de grande prestígio nas relações internacionais. O Estatuto de Roma prevê que os juízes eleitos devem representar os principais grupos geográficos. Havia nove candidatos da América Latina, sendo que foram eleitos três. O espaço ocupado pelo Brasil nas principais Cortes internacionais fica confirmado – na Corte Internacional de Justiça, temos o juiz Francisco Resek, e no Tribunal Internacional do Direito do Mar, temos o juiz Vicente Marotta Rangel – demonstra que nosso país merece o respeito dos demais Estados. Nas organizações políticas da ONU, o Brasil também tem um peso muito grande e é importante que ele seja preservado. Desde o início, eu participei do anteprojeto de lei para a implementação das regras do TPI no ordenamento brasileiro, que está para ser encaminhado ao Congresso. Há um sentido de urgência na tramitação deste anteprojeto na medida em que, com a ratificação do ponto de vista internacional, já estamos obrigados a cumpri-lo. Se acontecessem, em tese, por um desses dias alguns crimes contra a humanidade, os acusados teriam que ser enviados ao TPI porque não teríamos como julgá-los. Se quisermos evitar que brasileiros sejam entregues aos TPI, temos que aprovar esse anteprojeto.

ISTOÉ – O fato de ser mulher beneficia o trabalho no TPI nos casos de violações contra as mulheres cometidas em conflitos?
Sylvia Steiner

A experiência dos tribunais ad hoc para Ruanda e para a ex-Iugoslávia demonstrou que as mulheres, em regiões de conflito, são as principais vítimas dos mais diversos crimes. Elas sofrem os efeitos do conflito em si, perdem maridos e filhos, ficam responsáveis pela segurança e pelo sustento dos filhos e, ainda por cima, sofrem toda a sorte de abusos sexuais. Desde tempos imemoriais, as mulheres são parte do butim, como objetos a serem distribuídos entre os vencedores. Essa especificidade da situação da mulher como vítima de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e de genocídio, só veio a ser efetivamente considerada muito recentemente. Por isso acho importante que haja um equilíbrio de gênero no Tribunal Penal Internacional, pois a perspectiva de gênero é essencial não só no julgamento dos acusados, mas na fixação da reparação às vítimas. Isso não quer dizer que só as mulheres tenham a perspectiva de gênero. Mas a presença de mulheres no corpo de juízes e no gabinete da promotoria é de grande valia, na medida em que as referidas especificidades são imediatamente detectadas e avaliadas.

ISTOÉ – Como é sair de uma vida agitada em São Paulo, cheia de amigos, para a cinzenta Haia, onde irá viver nove anos?
Sylvia Steiner

Meus dois filhos são casados, o que não significa que eu não vou morrer de saudades. Eu ainda nem decidi se vou morar em Haia ou Amsterdã. Vou agora passar uma temporada maior e ver como é morar em Haia, porque nesses dois meses eu vivi em hotel, sem ter a noção do dia-a-dia. Vou cozinhar, lavar, passar, conviver com os vizinhos. Surgiu uma idéia entre meus amigos do Brasil de, num futuro a médio prazo, abrir um barzinho, um espaço onde os amigos possam se encontrar em Haia. Eles querem fazer um rodízio de pessoas que vão me visitar e, como eu sei que vivem muitos brasileiros lá, a idéia é um ponto de encontro para levarmos os amigos a ouvir música brasileira. Vamos ver. Por enquanto não é um projeto, é um sonho. Um sonho que já tem nome: Bar D’Haia (risadas). Vamos ver se ele vira realidade. Haia é uma cidade tão cinzenta, nublada. Quando as pessoas vêem o sol, elas festejam.