A barafunda que se iniciou em 1998 com a privatização da Eletropaulo, arrematada pela empresa americana AES Corp., teve um capítulo especial na segunda-feira 8. Há quatro anos, a AES começou a gerir de forma desastrosa a maior distribuidora de energia da América Latina e deixou de pagar as parcelas do empréstimo de US$ 1,2 bilhão concedido pelo Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). As duas partes acabam de firmar um pré-contrato para equacionar a dívida. Pela negociação, o BNDES abre mão de leiloar as ações da Eletropaulo dadas em garantia da transação e troca 50% do débito pela condição de dono de metade da NovaCom, um conglomerado de vários ativos da AES. A parte do banco na empresa está avaliada em US$ 600 milhões.

O restante da dívida – outros US$ 600 milhões – seria refinanciado
e a empresa se comprometeria a quitar em dinheiro a primeira parcela
de US$ 60 milhões. “Tínhamos uma posição precária e saímos dessa negociação fortalecidos, ampliamos as garantias”, afirma o diretor de infra-estrutura do BNDES, Roberto Timótheo da Costa. Alguns políticos
e técnicos têm opinião diferente. O deputado federal José Janene (PP/PR), presidente da Comissão de Minas e Energia, diz que o problema começou com a privatização mal-feita. Para ele, o acordo apenas confirmou a tradição do banco de atuar como hospital de empresas falidas. “Sumiram com 80% do valor emprestado, mandaram esse dinheiro para o Exterior e não pagaram um centavo ao credor. Pelo novo acordo, vão receber o perdão da dívida e o credor entra de sócio. Se quebrar, fica com o prejuízo”, criticou.

Há outra preocupação de Janene quanto ao acordo. “Houve uma movimentação estranha de compra de ações 30 dias antes”, diz ele.
“Um ex-funcionário da AES disse na Câmara que o ex-diretor do BNDES Pio Borges foi contratado pela empresa depois de garantir que conseguiria fechar o acordo.” A suspeita de troca de informações privilegiadas levou o deputado a convocar os diretores do banco, da Eletropaulo, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da AES para dar explicações. Roberto Timótheo, do BNDES, descarta a ocorrência de lances escusos. “Ninguém poderia ter antecipadamente essa informação, já que o acordo foi firmado cinco minutos antes do anúncio à imprensa. Há testemunhas de que até o último minuto eu estava dando um murro na mesa, prestes
a melar toda a negociação.”

UTI – Os sete meses de tratativas com a AES foram tão difíceis que a pressão levou Timótheo à UTI cardiológica no início de agosto, por conta de um infarto. Ele defende que o pré-contrato foi o melhor possível. “Se leiloássemos as ações dadas em garantia, teríamos uma briga judicial de pelo menos três anos e não levaríamos mais do que
US$ 200 milhões, pondo em risco o abastecimento de São Paulo”, explica. “Além disso, tínhamos contratos com 14 ‘empresas de papel’, sediadas em paraísos fiscais, e agora tratamos com uma só empresa, a AES, que pode ser acionada na corte dos Estados Unidos”, explica. A AES continua com a gerência operacional das empresas e o BNDES terá participação no conselho de administração e nos conselhos fiscais. O banco incluiu no conglomerado NovaCom a empresa AES Tietê, cujas ações já haviam sido dadas como garantia em uma negociação nos Estados Unidos. O contrato só será assinado quando a AES Tietê estiver desimpedida.

A gestão da AES à frente da Eletropaulo foi uma verdadeira catástrofe. Relatórios do Tribunal de Contas da União revelam que o endividamento da empresa em 1999 era de R$ 1,9 bilhão e saltou para R$ 6 bilhões em junho de 2003. “Apesar disso, a AES distribui cerca de R$ 25 milhões por ano de remuneração à sua diretoria, enquanto a Aneel estima que o ideal seria um pagamento de R$ 2,2 milhões”, critica Carlos Kirchner, da ONG Ilumina. “Em casos de má gestão financeira, como o da Eletropaulo, deveria ser decretada a caducidade do contrato”, comenta Kirchner. O deputado federal Fernando Ferro (PT/SP) discorda. “Isso detonaria uma briga judicial sem previsão para acabar”, afirma. Ferro avalia que a ação do BNDES poderia ter sido mais incisiva, mas há bons motivos para a instituição encaminhar o assunto com prudência: “Há uma preocupação política de sinalizar para outras empresas que o BNDES não cria conflitos”. O diretor do BNDES discorda: “O fator político não pesou na negociação.” Como o acordo ainda está por ser fechado, espera-se que haja tempo para a sociedade se certificar de que vale a pena investir tanto para tapar o buraco da Eletropaulo.