Antigamente, não havia muito o que questionar sobre a educação dos filhos: os pais mandavam, eles obedeciam. O enfoque era autoritário. Mas, nas últimas décadas, a família mudou. A mulher foi para o mercado de trabalho e abriram-se outras frentes para a educação. Como ninguém queria repetir os modelos repressores dos pais, a criança ganhou novo status – ela passou a ter voz dentro de casa. Essa disposição deu início a uma psicologização dos relacionamentos familiares. E se o pêndulo já estava desequilibrado, foi para o extremo oposto. Os pais passaram a ter medo de dizer “não” e traumatizar os filhos. Vivemos hoje o resultado dessa disparidade: um estado de confusão e culpa no qual é difusa a idéia do que seja dar uma boa educação. Nesse vácuo, emerge um vigoroso mercado editorial dedicado a orientar a criação de filhos. Para se ter uma idéia da força deste tema, nas 56 lojas da Livraria Siciliano espalhadas pelo Brasil, o filão da auto-ajuda – no qual se incluem os livros de orientação para pais – representa 17% das vendas, enquanto a literatura chega a 19,8%. Já na Livraria Cultura, que tem duas grandes lojas em São Paulo, uma em Porto Alegre (RS) e em breve terá outra no Recife, esse tipo de livro entra na classificação de não-ficção, que é ainda mais ampla, e dos 15 mais vendidos, quatro em média falam de como educar os filhos.

Dados do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) mostram que o segmento de auto-ajuda é campeão de vendas no Brasil. Em 2002 foram editados 710 títulos, o que corresponde a 2,5 milhões de exemplares, um recorde. Segundo Paulo Rocco, presidente do Snel e dono da editora que leva seu sobrenome, no Rio, não há como distinguir o porcentual destinado a questões familiares. Sabe-se, porém, que o filão atinge um público amplo. “Muitos leitores não são tradicionais consumidores de literatura. E esses livros não são datados e têm vida longa”, explica.

O mercado prova que essas obras funcionam como um guia supletivo de como lidar com a criançada. Foi assim com a professora carioca Simone de Oliveira, 31 anos. Mãe de Luís Guilherme, dez anos, e Gabriel Nicolas, cinco. Ela teve dificuldades em lidar com o filho mais velho, que apresentou, anos atrás, muita agitação e dificuldade na escola. “Eu não sabia o que fazer e perdi a paciência algumas vezes. A madrinha dele me deu os livros Quem ama, educa! e Limites sem trauma. Isso me ajudou muito. Vi que uma coisa é querer passar o melhor para os filhos e outra, bem diferente, é fazer isso da maneira certa”, conta Simone.

Os livros citados por Simone são dois best-sellers nacionais. Quem ama, educa! faz parte da lista de sucesso do psiquiatra Içami Tiba, autor de outros nove títulos sobre educação de filhos. Desde o seu lançamento pela Editora Gente,
em final de novembro, figura em quase todas as listas de livros
mais vendidos do País. Também
foi editado na Itália, em Portugal
e em países de língua espanhola.
No Brasil, já ultrapassou os
250 mil exemplares e está na
47ª edição. Limites sem trauma, lançado em 2000 pela Editora Record, é responsável pela metade dos
400 mil exemplares vendidos da educadora carioca Tania Zagury,
s autora de outros cinco títulos.

O que os pais buscam nesses livros, em resumo, são referências
que ficaram perdidas na sociedade moderna. A psicóloga Rosely Sayão
acaba de lançar o livro Como educar meu filho? (Editora Publifolha),
que reúne artigos publicados no jornal Folha de S. Paulo entre 2000
e 2002, e afirma que hoje não existe um modelo para educar. “Não
há referências nem mesmo do que é ser pai. A sociedade está perdida, logo as famílias também”, diz.

Essa falta de referências aliada à exposição a tantas correntes pedagógicas, terapêuticas e comportamentais gerou novos conflitos. Basta fazer perguntas simples a pais e mães, como “é válido dar palmadas?” ou “a criança pode dormir na cama dos pais?”, para verificar a desorientação resultante, muitas vezes, do excesso de informações. Mas há solução. De acordo com a terapeuta familiar Miriam Bove Fernandes, de São Paulo, é preciso selecionar o que ler e não acreditar em “receitas de bolo” para educar filhos. “É importante dar valor à própria intuição e sensibilidade e nem sempre ir atrás das teorias”, diz ela. A educadora Tânia Zagury concorda. “Os autores têm linhas distintas. Os pais devem ler, mas a decisão do que aplicar deve ser autêntica”, ensina.

A psicóloga de família e escritora Maria Tereza Maldonado, outra bestseller, que acaba de lançar
As sementes do amor – educar crianças de zero a três anos para
a paz
(Editora Planeta), atribui o psicologismo nas relações familiares à insegurança dos pais. Autora também de
Comunicação entre
pais e filhos
(Editora Saraiva),
na 26ª edição, ela afirma que a intensa busca por informações também se deve às novas formações familiares. “Nas últimas décadas, há mais pais separados, solteiros, homossexuais ou mesmo avós criando netos. E novos desafios exigem novas diretrizes”, afirma.

Embora existam obras com pesquisas e estudos sérios, sem fórmulas definitivas, há também outras inconsistentes, rarefeitas. E há aquelas com traduções mal adaptadas para a nossa realidade. Exemplos não faltam. No livro Criando meninas, da educadora alemã Gisela Preuschoff (Editora Fundamento) há afirmações do tipo: “Procure convencer a diretoria do colégio de sua filha a oferecer cursos de autodefesa,
mesmo se forem pagos
.” Como se, no Brasil, existissem cursos extracurriculares gratuitos ou várias escolas capazes de abarcar esse tipo de luxo. No título A resposta é não, de Cynthia Whitham (Editora
M. Brooks), como em tantos outros de língua inglesa, os personagens
têm nomes nada parecidos com os nossos e as cenas são típicas de quadrinhos ou filmes americanos. Exemplo: “Vocês quebraram a janela
do sr. Hill quando estavam jogando bola. Vamos pegar o Jeff e o Frank
e nos desculpar com o sr. Hill
.”

Os pais, portanto, devem prestar atenção a essas sutilezas e não levar tudo ao pé da letra. Até porque, estrangeiros ou não, os autores diferem ideologicamente e defendem algumas “políticas” educacionais duvidosas. No mesmo A resposta é não, que se propõe a ensinar como dizer não sem voltar atrás, a conversa com os filhos sugere chantagem e castigo. Vale até prêmio – em dinheiro – para quem ficar quieto durante uma viagem. Muito diferente do que orienta o pediatra e psicanalista Leonardo Posternack, autor do livro O direito à verdade – cartas para uma criança (Editora Globo). Para ele, o certo é economizar os nãos. “Educar significa dizer muitos nãos e frustrar a criança. Mas dizer não a cada segundo ultrapassa a função de conter. É castrativo”, diz.

Na visão do jornalista e escritor Luis Lobo, autor de Escola de pais (Editora Lacerda), castigos devem ser muito bem ponderados e
as palmadas, abolidas. E, já que os pais estão perdidos diante de
tantos conceitos, a saída para ele é criar uma escola de formação
de pais. Seu argumento: já que criar filhos é uma das funções mais importantes da vida, por que as pessoas não se preparam para isso?
Em seu próximo livro, Sequestro das emoções – para o qual procura editora –, Lobo aponta que os pais não estão ensinando seus filhos
a lidar com emoções e sentimentos.

Alguns especialistas, no entanto, já criaram cursos direcionados à
arte de educar. E olhar para os sentimentos é justamente um dos pilares do treinamento para pais realizado há cinco anos em São Paulo pelas psicólogas Adri Dayan, Dina Azrak e Elisabeth Wajnryt. As aulas têm como base o livro Como falar para seu filho ouvir e como ouvir para seu filho falar, de Adele Faber e Elaine Mazlish, da Summus Editorial, do qual foram tradutoras. Com mais de dois milhões de exemplares vendidos nos Estados Unidos, o livro foi lançado no Brasil em março. As autoras americanas coordenam grupos de pais há 20 anos e criaram um método e exercícios práticos para estabelecer diálogos produtivos, positivos e respeitosos com os filhos. “O curso propõe novas atitudes e linguagem. É como um outro idioma”, diz Dina. Ela explica que em geral os pais se perdem em considerações e lamentações inúteis. “Os pais não conhecem o modelo assertivo de comunicação”, analisa ela.

A comunicação assertiva proposta inclui etapas como: descrever o sentimento do outro, mostrando empatia; falar do próprio sentimento; e buscar a melhor solução. Por exemplo, no caso de um adolescente que nunca chega no horário combinado, o ideal é começar a conversa dizendo que sabe como é difícil para ele abandonar os amigos. Mas, por outro lado, isso traz preocupação em casa. O próximo passo é propor fazer com ele uma lista das possíveis soluções para que todos fiquem satisfeitos. Dina enfatiza que a atitude de atenção vai muito além do momento daquela conversa. “Muitos pais não conhecem seus filhos. Não sabem qual é o nome de seus melhores amigos, não sabem o prato de que mais gostam nem a que lugares preferem ir”, aponta a psicóloga. E nisso não há livro que dê jeito.

Como lidar com a mentira?

Luis Lobo – A fantasia é uma necessidade e uma prova da criatividade da criança. Quando a impedimos de fantasiar, castramos sua criatividade. Os pais devem entender que quando uma criança quer muito uma coisa, é capaz de afirmar que “o papai deixou”. Até mesmo o amigo oculto é uma verdade para a criança. O que caracteriza a mentira é o prejuízo que pode causar a alguém. E a mentira é aprendida. Crianças não distinguem as pequenas mentiras, as sociais, as piedosas, as convenientes. É preciso explicar a elas que há mentiras e mentiras. E até demonstrar que ninguém é absolutamente franco.

Maria Tereza Maldonado – Mesmo na época da fantasia, pode-se “embarcar” na brincadeira e, em seguida, “desembarcar” na realidade. (Exemplo: “Nossa, seria o máximo se a gente tivesse mesmo um carro
que voasse, a gente não ia demorar tanto para chegar aos lugares,
que chato que ninguém ainda inventou um carro que voa, não é?”)
Para lidar com a mentira, é preciso perceber quais as necessidades
que estão sendo atendidas com ela e como podem ser atendidas
lidando-se com a verdade.

Qual a melhor forma de tratar
os jogos sexuais na infância?

Lobo – Devem ser tratados com naturalidade, sem espanto, escândalo ou castigo. Dê informação à criança que, geralmente, está interessada em saber sobre “a diferença” e sobre reprodução. Ela quer saber de onde veio, como foi feita, e não sobre sexo. Bem informada, só vai pensar em sexo no momento apropriado. E essa informação vai, inclusive, protegê-la.

Maria Tereza – É normal a curiosidade de ver e de tocar o corpo de outras crianças, assim como é normal masturbar-se. No entanto, se
isso acontece com frequência excessiva, é sintoma de ansiedade ou
até mesmo de reprodução de cenas que presenciou ou das quais participou indevidamente (como casos de abuso sexual). É necessário construir com a criança a noção de privacidade, dizendo, por exemplo, que ela pode brincar com seus genitais quando estiver sozinha e não
na frente de outras pessoas.

O que fazer quando parece que
só castigo ou palmada resolve?

Lobo – A palmada é uma violência física, uma agressão inadmissível. Tanto quanto é inadmissível que a criança bata nos pais quando eles erram… Mas o castigo, se não for físico, é muitas vezes necessário, indispensável e educativo. A melhor forma de castigar é retirar uma regalia. Mas, antes de anunciar o castigo, esfrie a cabeça. E, uma vez anunciado, cumpra-o integralmente. Para isso ele deve ser justo e, quanto menor a criança, mais curto.

Maria Tereza – Sempre há possibilidades de construir outros caminhos, inclusive pela combinação de firmeza, consistência e serenidade na colocação dos limites e na construção de “acordos de bom convívio” eficientes. É sempre bom lembrar que, se babás e professoras não podem dar palmadas e, portanto, descobrem outros meios de disciplinar as crianças, os pais também podem criar esses outros recursos. Quanto ao “castigo”, precisa ser substituído por “consequência”, na base de “primeiro os deveres, depois os prazeres”.

Os filhos podem sempre escolher os passeios?
Deve-se insistir para irem aos compromissos familiares?

Leonardo Posternak – O pêndulo familiar não pode pender sempre para o mesmo lado. Se alguém ganha sempre, há alguém que perde sempre. Há momentos em que os filhos têm de aceitar determinados compromissos, como há ocasiões em que os pais têm que fazer “vista grossa”. Deve haver passeios com toda a família, mas também deve haver um dia para sair com cada um dos filhos, enquanto os outros arranjam outra atividade por não curtir as mesmas coisas que o irmão. Tudo isso se aprende sem chantagem, sedução, violência, nem autoritarismo. Com respeito mútuo.

Içami Tiba – Não se pode deixar que os filhos façam o programa da família sempre. Tem que dar opções com limites desde pequeno, porque os pais são as primeiras vítimas da falta de educação dos filhos. Pode ir à festa, mas também tem que honrar os compromissos da família. Se a criança não tiver certos deveres também não reconhecerá o lazer.

Remexer as coisas de filhos adolescentes
é invasão de privacidade?

Maria Tereza – Dúvidas e suspeitas precisam ser conversadas para ser esclarecidas. Muitas vezes, adolescentes que se fecham sentem-se controlados ou excessivamente criticados. É preciso encontrar portas mais acessíveis, tentar estabelecer pontes, como escutá-los melhor,
a partir do ponto de vista deles,
sem logo criticar ou “provar” que
eles estão errados.

Tiba – Se o adolescente não merece, é. Mas se o filho está dando sinais de que está usando drogas, mentindo ou roubando, é justificável – e até um dever – porque a responsabilidade dos atos do filho ainda é do pai. Se há desconfiança, tem que revistar. A maioria dos usuários de drogas só admite o vício ao ser descoberto, depois de mais de um ano de uso. Ele não pode reclamar porque usou
mal a privacidade que teve.

Como estabelecer o tão propalado limite?

Lobo – Em primeiro lugar, os pais devem ser presentes. Quando ausentes, eles não convivem e não têm como colocar limites. Então, impõem. São péssimos educadores. Os pais permissivos também, porque são incapazes de colocar limites, um tipo de contrato de comportamento. Entre pais e filhos há um contrato-base: os filhos devem aos pais amor, respeito e obediência. Em troca, os pais devem amor, respeito e atenção. Quando o adulto quebra o contrato, não se estabelece uma relação justa e esses pais são malsucedidos.

Posternak – Não se pode dizer sempre sim. Um pai ausente (o mais daninho é o pai presente, escondido atrás do jornal ou do computador) ou permissivo é assim porque tenta “pagar” sua ausência ou simplesmente porque entende que ser bonzinho é concordar com tudo. Esse tipo de pai não tem limites próprios, assim não pode colocá-los ao filho, quando educar significa muitas vezes dizer não e frustrar.

O que fazer com os conflitos entre irmãos?

Maria Tereza – Os conflitos entre
irmãos são oportunidades de aprender habilidades de resolução de problemas. Na maioria das vezes, resolvem por
eles próprios. Quando necessária a intervenção dos pais, o melhor
é reconhecer que os dois são responsáveis pela briga e, portanto, ambos são também responsáveis por encontrar uma solução aceitável.

Posternak – Os pais representam o equilíbrio e a segurança para os filhos. Os irmãos estimulam os ciúmes, a inveja e até o desejo de agressão que são sentimentos tão humanos quanto o amor e o afeto. Só que eles devem estar bem dosados. Os irmãos preparam o primogênito para enfrentar o mundo externo, com perdas, frustrações e divisões. Se tudo está bem na família, isso vira logo cooperação e solidariedade. Estabelecer comparações entre os filhos gera desarmonia e ciúme. Cada filho é uma experiência original, única e intransferível dentro do grupo familiar. Devemos intervir pouco nas “lutas” entre irmãos, somente quando a agressão é intensa, aguda e sistemática.

Os filhos podem dormir com os pais?

Maria Tereza – Se é eventual, tudo bem. Quando é sistemático, prejudica a intimidade do casal. De qualquer forma, é importante perceber as motivações subjacentes ao pedido e descobrir outras maneiras aceitáveis de atendê-las. Por vezes, a criança está com medo, insegura, ou sente que tem poucas oportunidades de contato com os pais. Podem ser criados recursos para ampliar esse contato quando ainda estão todos acordados. É importante ajudar a criança a desenvolver recursos próprios para lidar com seus medos e inseguranças, fazendo ela se sentir mais competente.

Posternak – Este hábito é bem frequente. Tem a ver com comodismo – é mais rápido atender ao pedido dos filhos que aguentar birra no meio da madrugada; e com culpa – “coitadinho, eu saio quando ainda dorme e volto quando já está dormindo”. O que falta são limites claros e concretos. A criança que “sacaneia” os pais para dormir também o faz para comer, escolher roupa ou aceitar as saídas familiares.