[posts-relacionados]João não desgruda os olhos da tevê. Estirado num pequeno sofá, ele acompanha as estripulias de Scooby-Doo ao lado da cama do pai – o cineasta Fábio Barreto. De repente, tasca um beijo no rosto de Fábio e lhe fala baixinho no ouvido: “Papai, cheguei da escolinha.” João aprendeu com a mãe, a atriz Deborah Kalume, que o cineasta vive inerte – não vibra com as conquistas dos filhos, com a evolução da mulher no teatro nem com os gols do Botafogo – porque fez um “dodói” na cabeça ao capotar o carro. Desde a noite do acidente, 19 de dezembro de 2009, Fábio permanece inconsciente. Está inserido atualmente no que a medicina chama de “estado de mínima consciência”. Abre e fecha os olhos, mas não interage. Em alguns momentos, acorda quando é chamado, fixa o olhar e parece notar a presença de familiares. Esses lampejos de vida dão esperança aos Barreto. “Ele vai ficar assim?”, questionou João, às vésperas de seu quinto aniversário. “Respondi que não sei”, afirma Deborah. “Mas que o meu coração diz que o Fábio vai ficar bom.”

Deborah, 33 anos, recebeu a reportagem de ISTOÉ na casa da família, na zona sul do Rio de Janeiro. Contou que é obrigada a lidar duplamente com a saudade e a ansiedade – dela e do filho. Fábio teve traumatismo cranioencefálico. Passou três meses no hospital. Durante um bom tempo, João achou que o pai andava distante porque trabalhava no lançamento de seu último filme – “Lula, o filho do Brasil”. Ele voltou a conviver diariamente com Fábio há cerca de um ano, quando a família decidiu cuidar do cineasta na própria residência. Esse turbilhão de emoções embaralhou a cabecinha dele. Nas primeiras semanas, João ficou agressivo e chorava dizendo “quero o meu pai”. “Eu explicava que, da maneira dele, Fábio estava aqui”, lembra Deborah. João chegou a abraçar a tevê ao assistir a uma entrevista que o cineasta dera pouco antes do acidente. Perguntou se fora gravada quando ele estava na barriga da mãe.

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João está aprendendo a reinventar a relação com o pai. Toda manhã, corre para cumprimentá-lo. Do jeito que Fábio fazia com ele. “Bom-dia, flor do dia”, diz. Às vezes, sobe na cama hospitalar, mexe nos botões e vai se aconchegando. Os pais de Fábio, a produtora Lucy e o cineasta Luiz Carlos Barreto, vão visitá-lo todos os dias. Os irmãos, Paula e Bruno, estão sempre presentes. Fábio tem três filhos de outros relacionamentos. Lucas, 11 anos, vai vê-lo nos finais de semana. Mariana, 22 anos, mora com o pai. Ela costuma fazer massagem nas mãos e nos pés de Fábio. Júlia, 32 anos, é a mais velha. Mãe de duas crianças, passa horas lendo para o cineasta.

As chances de recuperação de um paciente com lesões cerebrais graves como as que o cineasta sofreu, segundo a literatura médica, diminuem com o tempo. Melhoras significativas nos 12 primeiros meses são cruciais para a definição de um bom prognóstico. “Bem-cuidada, uma pessoa pode viver muitos anos em coma vígil ou em estado de mínima consciência, principalmente se for jovem”, afirma Gisele Sampaio Silva, gerente médica do Programa Integrado de Neurologia do Hospital Israelita Albert Einstein. Fábio tem 53 anos. “Às vezes, bate o desespero de que isso não tenha fim. Mas, quando acho que não vou aguentar, o Fábio mexe um dedinho, vem um olhar, um suspiro, uma lágrima que escorre no cantinho do olho”, relata Deborah. “Não é uma questão de fé cega, mas não posso ignorar o que vejo no dia a dia em função do que os médicos dizem.”

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Histórias de pacientes que se recuperaram depois de anos, apesar de desafiarem as estatísticas, trazem esperança aos familiares. “Há momentos em que sabemos que o Fábio não está aqui. Mas, em outros, temos certeza de que está. Pedimos para mexer a mão e ele mexe um dedinho”, diz Deborah. “Não sei qual é o segredo para que fique mais tempo presente. Mas acho que, quanto mais ele estiver com a gente, mais conseguirá progredir nas respostas.” Fábio faz fisioterapia diariamente. Uma fonoaudióloga também o acompanha para estimular sua respiração e melhorar a deglutição. O cineasta respira sem aparelhos.

A família tem tentado de tudo. Na semana passada, Fábio foi submetido a uma cirurgia para a colocação de um marca-passo no cérebro. Teve uma fase em que Barretão botava mantras para o filho ouvir o dia todo porque acreditava que ajudariam a reorganizar o cérebro dele. Houve a fase de músicas clássicas e de MPB. E a que um único filme rodava no DVD. “Achávamos que o Fábio poderia captar algum momento. Principalmente quando colocávamos os filmes dele, por causa da ligação afetiva”, diz Deborah. “Passei um ano em função de acordar o Fábio.

Pesquisava na internet. Participava do banho, da fisioterapia. Queria fazer tudo. Falar com ele. Queria estimulá-lo o tempo todo. Quando completou um ano, foi caindo a ficha e a gente foi percebendo que não tem o poder de transformar isso. Fizemos e continuamos fazendo tudo para que ele acorde. Mas, agora, não com a responsabilidade de que vamos conseguir.”

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COTIDIANO
Geraldo Manfrin (acima) cuida da irmã em coma vígil há três anos. Dona Aparecida (abaixo)
está inconsciente desde o fim de 2009. Ela mora com as filhas na zona norte de São Paulo

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“As famílias podem fazer um tanto. Mas, a partir de um determinado ponto, não podem mais”, garante Wagner Malagó Tavares, supervisor do Pronto Socorro da Neurologia do Hospital das Clínicas de São Paulo. “A conversa tem de ser honesta. Os médicos têm de tirar essa culpa das famílias.” A franqueza, no entanto, não fez com que as duas filhas de Aparecida Lúcia de Oliveira, 72 anos, diminuíssem a luta. “Os médicos falam que o estado dela é vegetativo e não nos dão esperança. Mas, mesmo assim, a gente acredita que ela vai se restabelecer”, afirma Valéria, 51 anos, a mais velha. Aparecida teve um AVC no tronco – área vital do cérebro – 11 dias depois de Fábio sofrer o acidente. Ficou oito meses internada.

Quando saiu do hospital, a filha mais nova, a funcionária pública Lúcia, 50 anos, se mudou para a casa da mãe. A bancária aposentada Valéria já morava lá. Apesar de o plano de saúde cobrir uma auxiliar de enfermagem, não é suficiente. Uma das filhas tem de estar presente 24 horas. Lúcia e Valéria não reclamam. Cuidam de Aparecida com uma dedicação impressionante. O marido de Valéria, que vive no interior de São Paulo, vai visitá-la todo fim de semana. O de Lúcia vai toda manhã antes de seguir para o trabalho. “A família inteira participa. Instalamos uma campainha no quarto e, à noite, a enfermeira toca de três em três horas para ajudarmos a virar nossa mãe na cama”, relata Valéria.

Como o apaixonado enfermeiro Benício faz com a paciente Alícia no filme “Fale com ela”, do espanhol Pedro Almodóvar, as filhas falam com Aparecida o tempo todo. Contam detalhes comezinhos do dia a dia enquanto preparam o almoço. Diariamente, sintonizam a tevê na missa que ela acompanhava. Valéria pinta as unhas da mãe toda semana. As filhas acreditam que Aparecida acordará a qualquer momento e poderá se lembrar do que ouvira no período de coma. Por isso, nunca dizem coisas negativas perto dela e fazem tudo o que ela gostava: passam perfume, creme, batom.

Apesar de Aparecida não abrir os olhos desde que teve o AVC, as filhas sempre contam como ela está vestida: “Mãe, hoje você está de azul. Abra os olhinhos para ver como sua camisola é linda.” Os Oliveira conseguem manter Aparecida na própria residência porque o convênio cobre as despesas. Uma única diária da equipe de enfermagem lhes custaria, em média, R$ 380. Sem contar os gastos com remédios, fraldas e alimentação. “Além de cuidar do paciente, os profissionais de saúde têm de prestar atenção no que o doente representa para a família”, diz Maria Aparecida Martorelli, coordenadora da equipe de enfermagem da Dal Ben Home Care. “Temos de considerar os prognósticos, mas não podemos tirar a esperança de ninguém.”

Na casa dos Manfrin, na zona sul de São Paulo, tudo gira em torno do tratamento de Rosangela, 53 anos. Ela está em coma vígil desde abril de 2008. Foi internada para uma cirurgia de vesícula e saiu inconsciente. Nem os médicos nem o hospital explicaram por que 90% do cérebro dela acabou lesionado. “O problema pode ter ocorrido devido à anestesia. Isso eu compreendo. Mas é inadmissível minha irmã ter ficado mais de meia hora sem oxigênio”, afirma o bancário Geraldo, 52 anos. “Ou ela não estava entubada, o que seria um erro da equipe médica, ou o respirador não funcionou.” Geraldo se divide entre a própria casa e a da irmã. Além de estar à frente das decisões que envolvem Rosangela, tem de zelar pela mãe.

Quando Maria, 78 anos, foi morar no mesmo prédio que Rosangela, a ideia era de que a filha lhe fizesse companhia. Não o contrário. Maria permanece num vai e vem entre o próprio apartamento, no 14º andar, e o 15º, onde Rosangela segue ligada a um respirador artificial. Às vezes, se desespera. Chora. Fica buscando respostas. “O que fizeram foi um assassinato. Queria minha filha de volta”, lamenta Maria. “Tento não deixar a peteca cair porque, se a Rosangela recuperar a consciência, ela não pode ficar sem mãe. Mas é difícil. Converso muito com ela. Falo tudo o que vem à cabeça. Mas só coisa boa, ruim eu não falo. Acho que ela escuta, né!”


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