Confira, em vídeo, a entrevista com Milton Nascimento :

IstoE_MiltonNascimento_255.jpg

 

chamada.jpg 

O arpoador Benjamin pode até achar o cachalote uma bela espécie de baleia. Mas em Lamalera, a pequena ilha da Indonésia onde ele vive, a presença de um animal desses na costa é uma oportunidade rara de garantir alimento para toda a população local por meses. É por isso que Benjamin não hesita na hora de pular de um barco segurando um precário arpão e, num só golpe, ferir mortalmente o mamífero marinho, que pode chegar a 18 metros. “Planeta Humano”, nova série da BBC e do Discovery Channel que estreia na quinta-feira 12 e tem na versão brasileira a narração do cantor Milton Nascimento (leia quadro com entrevista à direita), se destaca de documentários anteriores como “Vida” e “Planeta Terra” por não focar em belos animais selvagens, mas numa espécie tão bem-sucedida a ponto de ser a única a conquistar todos os continentes – o ser humano.

“Decidimos que finalmente era a hora de virar a câmera para o outro lado e mostrar também o que somos e como vivemos em nosso ambiente natural”, disse com exclusividade à ISTOÉ Brian Leith, produtor-executivo da série. “Somos únicos em nos adaptar com tanto sucesso à vida em cada canto do planeta.” Mostrada no primeiro episódio, dedicado a povos que vivem do mar, a cena do arpoador Benjamin e seus colegas caçadores matando uma baleia poderia ser chocante. Mas o lado humano da luta é mostrado de forma tão magistral que é difícil não sentir empatia pelos guerreiros – ao final da cena, o público fica sabendo que apenas seis animais desse porte são mortos por ano, o que não chega a afetar sua população.

img1.jpg
ÁGUA SALGADA E DOCE
Mergulhador da Malásia (acima) fica até cinco minutos debaixo d’água sem equipamentos;
abaixo., pessoas no Mali usam lama do rio para retocar paredes da mesquita local

img.jpg

“A série causou certa controvérsia aqui na BBC porque a maioria dos nossos filmes é sobre a necessidade de proteger belos animais como uma baleia”, conta Leith. “Porém, acho que o que fizemos nessa série, pela primeira vez, foi mostrar que às vezes não temos que julgar as pessoas. Podemos apenas mostrar a vida como ela é”, diz. Segundo ele, basta lembrar que alguns atos que cometemos podem ser condenáveis para outros povos – matar uma vaca, para um hindu, é um pecado gravíssimo, por exemplo.

A mensagem de conservação contida na série vai além de mostrar a ação por vezes devastadora do homem no ambiente. Tradições como a caça do cachalote na Indonésia, os encantadores de tubarão de Papua-Nova Guiné, as danças da tribo wodaabe, no Níger, e os treinadores de falcão da Mongólia estão cada vez mais perto do fim. “É triste constatar que estamos perdendo diversidade. Muitas culturas estão ameaçadas de extinção”, define Leith.

img3.jpg
ALTO E SECO
Mongol com falcão adestrado (abaixo) e homens da tribo wodaabe em dança ritual no Níger (acima)

img2.jpg

Apesar das dificuldades que o mundo moderno impõe, algumas dessas tradições continuam firmes. Os pescadores de Laguna, em Santa Catarina, há séculos contam com a ajuda dos golfinhos, que direcionam as tainhas rumo às redes – em troca de ganhar, de bandeja, os peixes que tentam se desvencilhar das malhas. Nos oito episódios que contemplam os ambientes ocupados pelo homem – mar, montanha, floresta, savana, rio, gelo, deserto e cidade –, outros comportamentos tradicionais mostram que, depois de ocupar todos os habitats possíveis, nossa espécie também resiste às mudanças que ela mesma provoca.

img4.jpg 

 

“Humanos estão ameaçados também”

Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, o produtor executivo Brian Leith, da BBC, fala dos desafios para filmar a série e da sua tristeza em ver culturas humanas se perdendo.

ISTOÉ – Quando resolveram filmar essa série, qual era a ideia central que tinham?
Brian Leith – Decidimos que finalmente era a hora de virar a câmera para o outro lado e mostrar também o que somos e como vivemos em nosso ambiente natural. E, de fato, a série revela que o ser humano é uma criatura muito especial. Nós somos provavelmente o único ser vivo que se adaptou à vida em cada hábitat do mundo. Dos desertos ao Ártico, das florestas aos oceanos, somos únicos em nos adaptar tão bem a cada canto do planeta.

ISTOÉ – Qual foi o lugar mais difícil para se filmar?

Leith – Bem, houve alguns lugares muito, muito difíceis. Posso te dar alguns exemplos. Filmamos no Círculo Polar Ártico. Estivemos com pessoas que entram por baixo do gelo para fazer uma “colheita” de criaturas que vivem sob o mar congelado na Groenlândia. Fizemos filmagens também no topo das montanhas do Himalaia, há mais de 5 mil metros de altitude, em circunstâncias muito, muito complicadas.

Mas acho que, talvez, a locação mais difícil foi no coração de um vulcão ativo na Indonésia. Lá filmamos mineiros que extraem enxofre. Mais de 60 mineiros morreram nesse vulcão nos últimos anos, de tão perigoso que ele é. A fumaça do enxofre é tão poderosa que mata as pessoas. E a nossa equipe teve grandes dificuldades para trabalhar.

ISTOÉ – E qual desses lugares você acredita que seja o mais difícil para viver?

Leith – Acho que uma parte do mundo em que você tem que dizer “Como e por quê qualquer um poderia querer viver aqui?” é o Ártico. Esse é, provavelmente, o lugar mais inóspito no mundo. Por metade do ano, não há luz do dia, as temperaturas são abaixo de zero, árvores e outras plantas não crescem… Posso dizer que, de todos os lugares que o homem colonizou, a região do Ártico é a mais inóspita. Filmamos sequências lá com pessoas que fazem coisa incríveis para sobreviver.

ISTOÉ – No primeiro episódio, dedicado à vida na água, vemos os pescadores de Laguna, em Santa Catarina. Qual a participação do Brasil na série?
Leith – O Brasil é bastante proeminente nessa série. Um dos episódios é sobre como nós sobrevivemos em florestas. De fato, a floresta tropical é surpreendente porque, numa primeira impressão, poderíamos dizer que pode ser um lugar fácil de sobreviver. Há muita chuva, muitas plantas, insetos, animais e peixes, não é frio… Você acha que apenas comendo frutas e vegetais poderia viver ali.

Mas, na verdade, é um lugar muito, muito difícil para sobreviver e o conhecimento da natureza tem de ser muito preciso. Por isso filmamos vários sequências no Brasil, principalmente na Amazônia. Filmamos ainda uma seqüência de tribos sem contato com o mundo externo que vive na fronteira do Brasil com o Peru. É uma seqüência muito comovente, ver pessoas que vivem hoje da mesma forma que vivem há séculos, talvez milênios, sem entender o que estava acontecendo enquanto os filmávamos.

ISTOÉ – E os pescadores de Laguna?

Leith – Acho que também é uma das seqüências mais mágicas, pois vemos uma colaboração entre humanos e outra espécie, os golfinhos. Eles juntam esforços para pegar os peixes. Acho que é uma história muito especial. Há muito poucos casos assim no mundo, mas esses homens – apesar de serem pescadores modernos – praticam algo que provavelmente vem de centenas de anos. Essa relação com os golfinhos é fascinante.

ISTOÉ – Há outros casos semelhantes de interação entre homens e animais que vocês tenham registrado?

Leith – Há um outro exemplo muito especial na África, onde uma tribo em particular, os masai, aprenderam como entender os cantos de uma ave – chamada de “guia do mel”. É um pássaro que conduz as pessoas para o mel, pois podem sentir seu cheiro. Eles fazem isso porque não podem entrar numa colméia para pegar esse alimento, então colaboram com as pessoas, que usam sua força superior para extrair o mel. Enquanto os masai retribuírem aos pássaros com um pouco de mel, os pássaros continuarão ajudando eles. Mas se as pessoas não dão uma parte em troca para esses “guias”, eles param de ajudar.

ISTOÉ – No primeiro episódio, vemos os arpoadores de Lamalera, na Indonésia, que matam uma baleia para alimentar a ilha inteira. Como mostrar a morte de um belo animal sem que o público sinta raiva dos arpoadores?

Leith – Essa é uma ótima pergunta. A série causou uma certa controvérsia aqui na Unidade de História Natural da BBC, porque a maioria dos nossos filmes é sobre a necessidade de proteger belos animais como uma baleia. Porém, acho que o que fizemos nessa série, pela primeira vez, foi mostrar que às vezes não temos de julgar as pessoas. Podemos apenas mostrar a vida como ela é.

Acho que somos muito rápidos, às vezes, em julgar outras pessoas quando eles fazem algo que não gostamos, como matar uma baleia. Mas somos muito relutantes em admitir que nós, também – todos nós – fazemos coisas que talvez outras pessoas não gostem. Se você é um hindu vivendo na Índia, você pensaria que matar uma vaca por causa da carne é um pecado. Talvez o modo como tratamos nossos próprios animais que vivem em fazendas como porcos, galinhas e outros seja cruel também.

Uma das coisas que queremos com “Planeta Humano” é deixar as pessoas simplesmente observar as notáveis, incríveis relações entre o homem e a natureza, sem julgamento. Amamos animais; amamos pessoas. Acho que as pessoas aproveitam a série sem culpa, sem julgamento.

ISTOÉ – Que ameaças esses povos tradicionais enfrentam hoje?

Leith – Essa é uma questão muito importante que vem com essa série. Produções sobre vida selvagem normalmente são todas sobre animais ameaçados de extinção – e aí você está falando sobre tigres, pandas… Mas uma das realizações que estamos tendo com “Planeta Humano” é que há também povos, culturas e línguas ameaçadas. E relações com a natureza também ameaçadas.

Vejamos o exemplo dos pescadores de Laguna. Essa relação é muito especial, quase única no mundo. Bem, você sabe que isso pode ser perdido facilmente se esses homens hoje pararem de fazer isso. Então, os golfinhos vão parar de colaborar e tudo terá sumido para sempre. E, de fato, há algumas histórias que queríamos filmar, mas percebemos que haviam desaparecido. Há casos em que as pessoas esqueceram como fazer certas coisas, ou todos deixaram suas terras, talvez tenham deixado o deserto do Kalahari, se mudado para uma cidade e sua família tenha esquecido do que faziam seus ancestrais.

O que é triste é que humanos podem estar ameaçados também. E nós temos de proteger seres humanos e culturas. Uma das coisas tristes sobre a expansão das cidades é que estamos ficando homogêneos. Vivemos as mesmas vidas com o mesmo hambúrguer do McDonald e o mesmo cigarro Marlboro e a mesma Coca-Cola. Estamos perdendo essas relações notáveis, especiais, únicas, com nossos hábitats, com a natureza, que mostramos nessa série. Não são apenas animais bonitos que podem estar ameaçados de acabar, mas pessoas também.

ISTOÉ – Como imagina esses povos daqui a 50 anos?

Leith – Minha conclusão, depois de fazer essa série, é que documentamos certos comportamentos – se você quiser chamá-los assim –, certos relacionamentos entre homem e natureza que nós nunca poderemos filmar novamente. Se quiser tentar fazer essa série de novo daqui a dez anos, posso dizer que talvez haverá 20 dessas sequências que não poderemos ver de novo.

Acho que as pessoas que fazem coisas como pular no mar com um arpão na mão para matar uma baleia… Isso vai acabar. Por um certo ponto de vista, será bom porque é algo perigoso e ainda mata um belo animal. Mas, por outro lado, é triste constatar que estamos perdendo diversidade. Quando pensamos em perder diversidade de espécies animais, achamos isso triste. Bem, estamos perdendo diversidade de culturas também. Estamos ameaçados.

Mas, ao mesmo tempo, é preciso cautela. Nós não devemos dizer a essas pessoas para viverem como seres de museu? Se você oferecer a chance de viverem numa cidade com dinheiro e um carro, ou continuar vivendo numa ilha onde eles têm de pular no oceano e matar uma baleia, eles provavelmente dirão: “Eu fico com o carro, por favor, e viverei na cidade”. Não podemos negar às pessoas a chance de mudar suas vidas, porque todos nós fazemos essas escolhas todos os dias. É apenas triste ver a diversidade humana desaparecendo.