O terceiro milênio traz pela primeira vez na história da humanidade a oportunidade de se editar o código genético dos seres vivos. O valioso manuscrito da vida virou uma espécie de disquete de computador. Pode-se cortar partes de seu texto, substituí-las ou acrescentar outras. Os genes se ligam como os vagões de um trem dentro do núcleo das células. A tarefa dos cientistas é isolá-los, inseri-los em bactérias, copiá-los e decifrá-los. Dessa forma, estão se erguendo bibliotecas genéticas para modificar plantações e rebanhos, torná-los resistentes a doenças ou fonte de remédios. Nos laboratórios, porcos são alterados para que seus órgãos sejam transplantados no homem sem risco de rejeição, genes de bactérias são inseridos em sapos, de coelhos em macacos, de seres humanos em camundongos, de cana-de-açúcar em arroz, de ervilha em eucalipto. Cerca de 300 medicamentos gerados pela engenharia genética deverão chegar ao mercado este ano.

O Brasil foi catapultado ao pódio dessa corrida científica internacional há três anos, ao decifrar o código genético da bactéria Xylella fastidiosa, que impede o crescimento dos laranjais. É o primeiro microorganismo responsável por uma doença agrícola a ter o genoma (conjunto completo de genes) desvendado. De lá para cá, um parque genômico instalou-se em solo brasileiro. Há 18 pesquisas em andamento com investimentos de US$ 36 milhões. Elas reúnem cerca de 900 profissionais, 200 laboratórios e são pilotadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Dois novos projetos deverão ser deslanchados este mês. Um deles é o genoma do café, responsável por US$ 1,6 bilhão das exportações brasileiras. O objetivo é identificar genes relacionados a doenças que acometem a planta. O segundo projeto, de US$ 3,5 milhões, trata do melhoramento genético do eucalipto. Com o apoio de quatro gigantes de celulose, um outro grupo de trabalho já saiu na frente e montou um arquivo de dez mil genes da árvore.

É difícil acreditar que ciência da melhor qualidade está sendo produzida num país de miséria recorde, mas os frutos desse trabalho estão alterando a imagem do País no Exterior. Em agosto de 2001, um evento em São Paulo reuniu mais gringos que brasileiros. Na mira dos holofotes não havia bumbuns sarados, jogadores de futebol ou escolas de samba. Os maiores especialistas em genética no mundo vieram conhecer e trabalhar junto aos 40 cientistas brasileiros que identificaram 1,2 milhão de fragmentos de genes de tumores malignos. “Formamos um excelente time”, elogiou Robert Strausberg, do Instituto Nacional do Câncer dos EUA.
 

Investimento – É um momento raro na história da ciência tupiniquim. O desafio agora é transformar conhecimento em riqueza. E impedir a fuga de cérebros do País. “Está na hora de os bancos e as multinacionais farmacêuticas investirem. Elas deveriam fazer pesquisas no Brasil, em vez de só querer vendê-las”, reclama o bioquímico inglês Andrew Simpson, diretor da filial brasileira do Instituto Ludwig de Pesquisa do Câncer. Prestes a conseguir a naturalização brasileira, Simpson é uma das grandes estrelas do genoma nacional. Além de coordenar o estudo do câncer, está à frente da rede nacional que identificou os genes da bactéria Chromobacterium violacea.

O primeiro passo para extrair lucro de uma descoberta é a patente, registro comercial de autoria. Como o Brasil não permite patentear organismos vivos, a Fapesp teve que submeter dois pedidos nos Estados Unidos: para o código genético completo da Xylella e para nove de seus genes que podem ser usados na fabricação da goma xantana, resina usada na perfuração de petróleo. “Tive que cercar o galinheiro lá fora. Temos competência e a vantagem de contar com uma enorme biodiversidade, mas nossa legislação é feita para derrotados”, reclama o diretor científico da Fapesp, José Fernando Perez, que já negocia com empresas estrangeiras o licenciamento da goma xantana.

Estratégia – Empresários brasileiros começam a despertar para os ovos de ouro da biotecnologia. O grupo Votorantim destinou US$ 300 milhões – quase o orçamento anual da Fapesp – para transformar pesquisas em projetos empresariais viáveis. Iniciativas como essa, no entanto, ainda são raridade. “As empresas não apostam num projeto se ele não der lucro imediato”, admite a coordenadora-geral de biotecnologia do CNPq, Silvana Medeiros. Enquanto nos Estados Unidos 80% dos cientistas são contratados das empresas, no Brasil a maioria é ligada a instituições públicas. Têm, portanto, o governo como patrão e baixos salários. “Cientistas europeus nos procuram para ter aulas de genoma e continuo ganhando um salarinho de R$ 4 mil. No Exterior, eu ganharia US$ 10 mil”, reclama a bióloga Ana Teresa de Vasconcelos, que montou o quebra-cabeça genético da Chromobacterium violacea. Estratégias são tão importantes quanto investimentos e salários. “Além do dinheiro, os Estados Unidos têm uma política de estímulos e isso exige articulação do governo para prestigiar a prata da casa”, observa o professor José Eduardo Cassiolato, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio (UFRJ). Segundo Cassiolato, os cientistas devem ter atrativos para virar empresários. “Se o mercado brasileiro não for rentável para a terapia genética, o pesquisador vai vender o produto lá fora”, afirma. O consenso é de que o governo deveria se transformar em comprador da produção científica local e viabilizar sua distribuição na rede pública de saúde.

Ainda que esses problemas sejam vencidos, há uma outra pedra no sapato da ciência: o polêmico debate sobre a liberação comercial dos alimentos geneticamente modificados (OGMs). Nos Estados Unidos e na Argentina eles já se incorporaram à paisagem agrícola. O Brasil proíbe sua venda, mas investe na pesquisa e criou a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança para regular o uso e a liberação dos transgênicos. Os ambientalistas acham pouco. Reivindicam a criação de grupos de estudo dos impactos ambientais e controle dos OGMs. As safras geneticamente modificadas parecem ser um caminho sem volta. Até hoje, não há conclusões sobre seus efeitos no homem e no meio ambiente. Por enquanto, a alergia foi a reação mais grave aos transgênicos. E mesmo assim os casos são raros. Mas na natureza há que se contar com o imponderável. Ninguém sabe o que acontecerá a longo prazo. “Plantações geneticamente modificadas podem eliminar bactérias e insetos benéficos à agricultura, criar superpragas e diminuir a biodiversidade agrícola”, explica Mariana Paoli, do Greenpeace. Os transgênicos não são heróis nem monstros. Para que a população tenha direito a voto na polêmica, ela precisa, por enquanto, de um único produto na prateleira: a informação.