As cenas no Vicente Piragibe – um dos 14 presídios do Complexo Penitenciário de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro –, com detentos falando ao celular e usando o pátio como “boca de fumo”, e o espancamento e morte do comerciante chinês Cham Kim Chang no presídio Ary Franco, na zona norte, são fragmentos de uma bomba-relógio que explode todos os dias no Brasil. A expansão de presídios nos últimos anos não diminuiu o problema e agentes do Estado que deveriam cuidar dos presos ora torturam para obter confissões, ora se corrompem para facilitar a vida e os negócios dos que podem pagar. Em 1995, o Brasil tinha 95,5 presos por 100 mil habitantes e hoje tem 173,5 por 100 mil – um aumento de 81,7%. Eram 148 mil presos há oito anos e hoje são 300 mil, disputando espaço em 1.430 presídios e delegacias. Na carceragem da Polinter, no Rio, 1.400 pessoas se amontoam onde deveria haver 300. Na Delegacia de Roubos e Furtos de Belo Horizonte – com capacidade para 80 presos, mas que abriga 500 –, 17 detentos foram executados por colegas de cela só este ano, um protesto macabro para que o Estado os transfira. Seis mil presos mofam nas delegacias mineiras. “Vivemos uma guerra”, desabafa o delegado Marco Antônio de Paula, da Delegacia de Venda Nova, ao norte da capital, que na segunda-feira 8 enfrentou uma rebelião de 60 detentos. A delegacia mantém 222 presos, quatro vezes sua capacidade. “A situação é uma excrescência”, resume o promotor Jarlan Botelho, que tomou uma medida inédita: interditou uma cadeia em Maracanaú, vizinha a Fortaleza. Não entra mais nenhum preso. As seis celas feitas para 40 pessoas empilham 107. No Rio, a recém-criada Associação pela Reforma Prisional entrou na Justiça pedindo a interdição de cadeias que se tornaram depósitos de animais. “O sistema penitenciário no Brasil foi subjugado”, atesta Angelo Roncalli, diretor do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.

Apesar da pressa do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que qualifica a situação de “calamitosa”, nenhuma das cinco penitenciárias federais de segurança máxima prometidas para abrigar os presos mais perigosos está perto de sair do papel. A mais adiantada, em Campo Grande (MS), aguarda estudos de instalação. Estimativa de conclusão: dez meses. No Rio, o secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira dos Santos, que cuida dos 35 estabelecimentos prisionais do Estado – uma massa de 19 mil presos, oito mil em delegacias –, lançou a idéia de um estado de emergência no sistema penitenciário. Agentes seriam contratados sem concurso e presídios construídos sem licitação.

Por enquanto, não vingou. Todo mês, 1.500 novos presos são entregues ao sistema carcerário, mil em São Paulo. O déficit nacional já é de 100 mil vagas. O caçula dos 280 presídios do País, em São Luís (MA), já tem 104 detentos. Ele foi inaugurado em agosto para desafogar o superlotado Complexo de Pedrinhas, com 1.200 presos, que viveu nova rebelião há um mês. “A gente anda no fio da navalha”, define o secretário de Justiça do Maranhão, Carlos Nina, que corre para construir mais dois presídios. “Muitos presídios são construídos às pressas, sem pensar na capacitação dos agentes”, repara Angelo Roncalli. “O sistema acaba abandonado na maioria dos Estados porque preso não dá voto”, conclui.

Governantes e estudiosos convergem para uma defesa: as cadeias têm de ser reservadas para crimes violentos, como homicídio, assalto a mão armada e estupro. O presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, Antônio Cláudio Mariz, afirma que a solução não passa pela construção civil. “Esse caos carcerário não será debelado com o crescimento dos presídios, mas mudando a estrutura do sistema”, aponta. Quando foi secretário de Segurança de São Paulo, em 1990, Mariz cuidava de 15 penitenciárias. Hoje o Estado tem 102, com 119 mil detentos, mais 25 mil em delegacias. “Prende-se muito mal no Brasil. Ladrão de galinha fica trancado e corruptos acabam soltos”, aponta Mariz, que defende uma expansão das penas alternativas. Permitida no Brasil desde 1984, a pena alternativa só beneficia 8% dos condenados. Na Inglaterra, o índice chega a 80%. “Para os conservadores, a única resposta é varrer para dentro da cadeia. Mas muitos presos poderiam estar em liberdade”, acredita Mariz, que vai provocar polêmica apresentando ao Conselho proposta de descriminalização do uso de drogas.

“Cadeia é um instrumento caro de punição”, faz coro Julita Lengruber, ex-diretora do Desipe, no Rio, e responsável pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. O custo médio de um preso é de R$ 700, dez vezes mais do que o de um aluno de primeiro grau. Buscando reduzir custos, dois Estados se aventuraram na privatização de presídios. No Paraná, as unidades de Curitiba, Londrina, Cascavel, Foz do Iguaçu e Guarapuava, somando 2,2 mil presos, foram terceirizadas, mas a experiência não deu certo. “Essa é uma função do Estado”, resume o secretário de Justiça do Paraná, Aldo Parzianello, que vai “reestatizar” as cadeias.
O Ceará insistiu na idéia, mas adotou uma privatização light, em que
a direção e a guarda são públicas e apenas serviços como alimentação
e atendimento médico ficaram com uma firma particular. A “gestão terceirizada” cearense zerou as rebeliões, mas aumentou os custos.
Cada preso, que nas unidades públicas custa R$ 660, nos presídios terceirizados de Fortaleza, Sobral e Juazeiro do Norte consome R$ 900.

A morte do chinês Cham Kim Chang no Rio mostra que a solução
para o caos carcerário não é só econômica. Marcelo Freixo, presidente
do Conselho da Comunidade, órgão da Execução Penal que fiscaliza
o sistema penitenciário no Estado, diz que “a tortura é generalizada, sistemática e permanente”. Em todos os presídios, diz o sociólogo
Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, o modus operandi é o mesmo. “Uma verdadeira engenharia da tortura”, diz. “As pessoas ouvem e repetem: ‘direitos humanos não são para bandido.
’ A sociedade tem de voltar a se indignar”, indigna-se o promotor Roosevelt de Carvalho, da Comarca de Poço Verde, interior de Sergipe. Roosevelt acaba de denunciar dois delegados por torturarem um cozinheiro e um motorista suspeitos de envolvimento em um assalto.
“A forma de apurar da polícia continua sendo a do tacão, do choque elétrico e da bordoada”, lamenta.

Controle – Do lado de dentro, líderes criminosos presos transformaram suas celas nos escritórios de seus negócios, repetindo a divisão territorial do lado de fora. O Comando Vermelho (CV) do Rio aliou-se ao PCC (Primeiro Comando da Capital), que domina os presídios de São Paulo,
e ambos disputam espaço com o Terceiro Comando (TC). Em Bangu 1,
CV e TC estão separados em duas alas. Bangu 2 é do TC e Bangu 3 e 4 têm o controle do CV. Com um sistema penitenciário assim, maconha e celulares em um presídio não espantam quem é do meio. “Todo mundo sabe que tem droga”, reconhece o secretário Astério. Desde quinta-feira 11, quatro mil policiais reforçam a segurança no Rio para prevenir ações de traficantes. É o 11 de setembro carioca, aniversário de um ano da morte do traficante Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, executado numa rebelião liderada por Fernandinho Beira-Mar em Bangu 1. Amigos
de Uê celebraram a data na Igreja da Candelária, no centro,
expulsando fotógrafos e jornalistas.

 

Tortura se espalha

Para arrancar confissões, extorquir, castigar ou intimidar, a tortura continua sendo uma prática muito utilizada no Brasil. É o que mostra um relatório do SOS Tortura da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que mantém um canal aberto com a população pelo 0800-707-5551. De outubro de 2001 a 5 de setembro deste ano foram registradas 2.075 denúncias. O que assusta é que 78% dos casos
são atribuídos a policiais e agentes penitenciários. Em 36% dos registros, a tortura foi usada como forma de castigo e em 23% para arrancar confissões. A Federal ocupa o nono lugar e foi citada em menos de 1% dos casos. Adultos (71%) e adolescentes (12%) são
as principais vítimas. São Paulo aparece em primeiro lugar no ranking (16% das denúncias), seguido por Minas (14%), Pará (9%), Bahia (7%) e Rio de Janeiro (6%). “Estamos organizando uma luta contra
a impunidade e a tortura no País e vamos erradicá-las”, promete Nilmário Miranda, ministro da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos. “Temos que aprovar a emenda da federalização para que
a União possa atuar quando o Estado não o fizer adequadamente.
E a autonomia das perícias técnicas – hoje subordinadas às polícias estaduais – “também é essencial”, diz. Para o ouvidor da polícia de
São Paulo, Itagiba Ferreira Cravo, que tem em suas estatísticas 88 denúncias de espancamento e tortura do ano passado para cá,
“o problema maior é a burocracia que o cidadão enfrenta na hora
de realizar um exame de corpo de delito.”

Madi Rodrigues