Nos últimos tempos, discos de cantoras novas têm aportado aos borbotões nas lojas do País, ratificando um fenômeno potencializado pelas facilidades tecnológicas dos estúdios digitais, que barateiam o processo. Mas, no meio desta avalanche, até o momento nenhuma voz de impacto havia acenado para o novo. A não ser, é claro, que este “novo” venha não só revestido de DNA nobre como cercado de imensa expectativa e trabalho de marketing digno das grandes estrelas estruturadas no panteão da música popular brasileira. É assim que o primeiro disco de Maria Rita, filha de Elis Regina e do pianista e arranjador César Camargo Mariano, chegou ao mercado, semana passada. Agora, a cortina finalmente foi levantada e só o tempo dirá se as saudações foram exageradas ou não. Por enquanto, pode-se dizer que Maria Rita é uma ótima intérprete que praticamente reencarnou Elis Regina. Esta associação inequívoca foi tomando forma desde que, na virada do milênio, surgiram os primeiros sussurros de que ela vivia escondida nos Estados Unidos e que a voz era idêntica à da mãe, morta em 1982. Ou seja, a cantora começava a virar mito antes mesmo de ser um deles.

Já no Brasil, a jovem de 26 anos recém-completados limitou-se a aparições trêmulas em shows do guitarrista Chico Pinheiro, sempre em pequenos espaços cujos assentos passaram a ser disputados com avidez. Diante da movimentação frenética da imprensa, Maria Rita, com razão, se assustou. Ainda não estava madura o suficiente para enfrentar o caminho escolhido, muito menos para aguentar a inevitável comparação com a lendária mãe. Para não contradizer totalmente sua opção, participou de um disco de Chico Pinheiro e de Pietá, o mais recente álbum de Milton Nascimento – que foi apadrinhado por Elis Regina nos longínquos anos 1960 –, e esperou o momento certo para se lançar. Há sete meses assinou “contrato diferenciado” com uma multinacional do disco, garantiu liberdade na escolha do repertório, preservou vontades e caprichos, ganhou tratamento de estrela e um lançamento inicial de 100 mil cópias, número atualmente alto até para grupos como Kid Abelha.

Mas, no meio de tanto anonimato, Maria Rita acaba sendo um achado que ofusca ainda mais as novas cantoras. Uma característica, no entanto,
a diferencia das colegas menos privilegiadas. Enquanto ela guarda uma herança genética,
as outras, com trabalhos muitas vezes independentes e de tiragens que raramente ultrapassam os cinco mil exemplares, remetem a nichos,
à influência pura e simples das grandes musas da MPB. Gal Costa ainda é um referencial muito forte, que pode ser sentido no disco da paulistana Vanessa Bumagny. A voz apurada e docemente trágica de Ná Ozzetti é outro referencial. Tente ouvir a mineirinha Ceumar ou a paulistana Roseli Martins para sentir a presença de Ná. Ou então reservar um tempo à paulistana Clara Becker, filha de Walmor Chagas e da mítica Cacilda Becker, para sentir uma voz que passeia entre Zizi Possi e Fátima Guedes.

Zélia Duncan – cujo estilo ecoa em álbuns da paraibana Renata Arruda, da carioca Isabella Taviani e da paulistana Tânia Maya – admite tal legado. “Quando tinha 12 anos, ganhei aquele disco Chico e Bethânia ao vivo e minha vida mudou, cantava pela casa com sotaque baiano”, diz ela, que mais tarde queria mudar para São Paulo e fazer backing vocal no grupo de Itamar Assumpção. “A figura da brasileira cantora é algo muito forte e arrebatador”, afirma Zélia. “Isso acaba influenciando as jovens que acalentam o sonho de poder estar no palco e no complicado cenário artístico.” Zélia Duncan diz adorar as diferentes vozes surgidas, mas garante que, decididamente, não gostaria de estar começando agora.

O insuspeito crítico e pesquisador José Ramos Tinhorão declarou que poucos se dão conta, mas, num país privilegiado de vozes femininas, Elis Regina não teve seguidoras. “Mesmo ela sendo uma unanimidade mundial em termos de técnica, timbre, repertório e, principalmente, sucesso de público.” Ele só faz questão de excetuar Claudia e Leila Pinheiro, cujos respectivos estilos lembram apenas determinadas facetas do talento extraordinário da Pimentinha. Tinhorão recorda que a ascensão feminina se deu nos anos 1930 com o fortalecimento do rádio e do interesse da classe média pela cultura popular. Até então, cantoras eram comparadas às artistas de teatro de revista do século anterior. Com sua abordagem peculiar, o crítico acredita que há muito tempo as cantoras se tornaram produtos. “Não existe uma artista que não seja fotografável. E Maria Rita faz o papel de emular a mãe.”

No caso dela, pode-se dizer que realmente nasce uma estrela. Entre
suas vontades, ela pôde se acompanhar dos músicos com quem está familiarizada. Destaque para o baixista Fábio Costa e o trombonista Bocato, que começou jovem na banda de Elis Regina. Abriu mão do piano do pai que, coincidentemente, acompanha o outro filho, Pedro Mariano, no recém-lançado Piano & voz, e não convocou nenhum dos coroados acostumados a compor para cantoras, entre eles José Miguel Wisnik,
o atual darling de gente como Elza Soares e da própria Ná Ozzetti.

Maria Rita, o disco, traz composições de Milton Nascimento e Fernando Brant (Encontros e despedidas) – Milton ainda a presenteou com a inédita A festa – e nada menos do que três canções de Marcelo Camelo, do grupo Los Hermanos, Veja bem meu bem, Santa chuva e Cara valente. Traz também Lavadeira do rio, de Lenine e Braulio Tavares, e o bolero Dos gardenias, de Isolina Carrillo. A produção aparenta simplicidade, mas é sofisticada a ponto de incluir um CD com faixa interativa que leva a um site do qual se pode baixar Estrela, estrela, de Vítor Ramil, e Vero, de Natan Marques e Murilo Antunes. A cantora reclama, mas quando se ouve Cupido, de Cláudio Lins, faixa que fecha o disco, é impossível não se pensar na sua mãe. “Quando dizem que canto igual a Elis, tenho vontade de falar, ‘bicho, ouve o disco Elis & Tom!’ Nego ainda tem coragem de dizer que vim para substituí-la? Eu tô no chinelo, lá embaixo”, disse ela a ISTOÉ, usando as mesmas gírias de Elis.

Para a cantora, que aos 16 anos foi morar com o pai nos Estados Unidos, onde se formou em comunicação social e trabalhou para pagar as contas, era impossível começar a cantar mais cedo. “Se eu não estivesse tão serena e com o pé fincado no chão, como estou hoje, não teria aguentado a pressão.” Nesta semana, ela vai enfrentar platéias bem maiores do que aquelas a que está acostumada. Devidamente acondicionada num modelito Giorgio Armani, ela fará shows aperitivos no Rio de Janeiro e em São Paulo, retornando às mesmas cidades em outubro para temporadas de três dias. Ainda é muito cedo para se fechar uma opinião sobre o que Maria Rita chama de trabalho autoral. Zélia Duncan, que empresta ao disco a canção Pagu, em parceria com Rita Lee, diz que a herança é muito forte e legítima. “Agora, a questão é saber administrar uma carreira que já chega cheia de bênçãos e se afirmar por ela mesma.” Mesmo porque, enquanto Maria Rita brilha, as novas cantoras brasileiras simplesmente cantam.