O programa espacial brasileiro tem tudo para ressurgir, como uma fênix, das cinzas que restaram do Veículo Lançador de Satélites (VLS-1), incendiado na base aérea de Alcântara, no Maranhão, na sexta-feira 22. Essa foi a mensagem transmitida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Centro Técnico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos, durante o velório coletivo de 19 das 21 vítimas, na última quarta-feira. Chorando, Lula se comprometeu a dar continuidade ao programa espacial, que prevê o completo domínio tecnológico da construção de satélites e de seu lançamento ao espaço. “Esta é a melhor maneira de homenagear nossos heróis e de manter viva a sua memória”, assegurou o presidente. Não basta, porém, a palavra de Lula e nem mesmo um hipotético considerável aumento no fluxo de recursos (hoje da ordem de
R$ 30 milhões por ano) para que se realize o sonho brasileiro de
lançar seus próprios satélites. É preciso apurar exatamente o
que aconteceu na sexta-feira 22.

A tragédia de Alcântara está entre os maiores acidentes do mundo em perdas humanas, quando se compara com outros desastres ocorridos nos projetos espaciais de todo o planeta. No inferno de Alcântara, que atingiu 3 mil graus Celsius, não foram destruídos o VLS de US$ 6,5 milhões nem só uma plataforma orçada em US$ 10 milhões. Além da perda irreparável e da dor dos familiares, a morte de 11 engenheiros e dez técnicos custou ao Brasil um quinto da equipe responsável pelo programa espacial, que consumiu cerca de US$ 300 milhões. “A recomposição de uma equipe como essa só se fará em três ou quatro anos”, afirma o brigadeiro Tiago Ribeiro, diretor do CTA.

Sabotagem – Nos últimos seis anos, essa foi a terceira tentativa fracassada de mandar ao espaço o VLS. Nas duas primeiras, em 1997 e 1999, os foguetes saíram do chão, mas foram destruídos em pleno vôo, por falhas de propulsão (leia quadro à pág 84). Dessa vez, o incêndio ocorreu no interior da plataforma, três dias antes da data programada para o lançamento. Em tese, não havia naquele instante nenhuma atividade de risco. As equipes faziam ajustes finais de equipamentos e instalavam câmeras de vídeo para registrar o lançamento. O desafio agora é descobrir por que um dos quatro propulsores começou a funcionar sem que houvesse qualquer ação para isso. Oficialmente, a hipótese de sabotagem é considerada remota. No sábado 23, ela era tida como “desprezível”. Na prática, porém, entre oficiais da Aeronáutica, a sabotagem é uma das mais prováveis causas do incêndio. Na semana da tragédia, todos os equipamentos do VLS foram testados e vistoriados. Tudo estava em ordem. O problema é que, depois da fornalha, sobrou pouco para ser periciado. Por isso, a orientação é conduzir as apurações de fora para dentro do VLS.

Militares envolvidos nas investigações vasculharam os hotéis de São Luís, a capital maranhense, e ficaram surpresos com o elevado número de estrangeiros – muitos americanos – hospedados na cidade, na semana da catástrofe. A Aeronáutica investiga pelo menos oito deles. No Vale do Paraíba, em São Paulo, as investigações seguem sob absoluto sigilo. A região concentra boa parte das indústrias fabricantes das peças do VLS e representa para o projeto espacial brasileiro o mesmo que o ABC paulista para a indústria automobilística. O objetivo da investigação é descobrir se algum dos estrangeiros que estiveram em São Luís também visitou essas empresas. Apesar do pente-fino nas fábricas, a hipótese mais plausível, em caso de sabotagem, é que ela tenha partido de algum agente externo aos foguetes, como um raio de microondas ou ondas eletromagnéticas, por exemplo, e não de um defeito de fabricação nas peças. “Uma onda eletromagnética poderia ser disparada de um pequeno aparelho ou mesmo do espaço, de algum satélite”, diz o cientista Édison Bittencourt, professor do CTA.

Mercado bilionário – O Brasil ainda engatinha com seu modesto programa espacial. Mesmo assim, a possibilidade de o País conquistar
a autonomia no lançamento de foguetes tem forte reflexo internacional, seja do ponto de vista econômico, seja por razões bélicas. O mercado
de lançamento de satélites movimenta cerca de US$ 10 bilhões ao
ano. Só oito países reúnem condições técnicas para isso: EUA, França,
China, Israel, Japão, Rússia, Índia e Ucrânia. É pouca oferta para
muita demanda. A fila de espera já chega ao ano de 2009, pois
muitos dos satélites hoje em órbita estão obsoletos e precisam ser substituídos. A entrada do Brasil nesse mercado promoveria um estrago considerável. A localização da base de Alcântara, praticamente na
linha do Equador, reduz em pelo menos um terço o consumo do
caríssimo combustível espacial.

Negociações – Dona de sua própria base, a Ucrânia pagará US$ 2 milhões cada vez que lançar seus foguetes Cyclone em Alcântara. O acordo comercial e tecnológico entre Brasil e Ucrânia foi assinado no mesmo dia da catástrofe do VLS-1. Negociação semelhante está sendo feita com a Rússia, sempre mantendo a soberania brasileira sobre Alcântara, ao contrário do que propunha o governo anterior. Fernando Henrique Cardoso pretendia arrendar a base aos Estados Unidos, que ficariam donos da região, proibindo a entrada de brasileiros no local. O plano atual é bem diferente. A partir do VLS, a idéia é construir foguetes capazes de colocar satélites em órbitas elevadas. Assim, o Brasil não embolsaria apenas os US$ 2 milhões pelo aluguel da base, mas cerca de US$ 20 milhões por lançamento, uma vez que o País receberia remuneração não só pelo local, mas também pelo uso do foguete brasileiro. Sob olhares internacionais, um incidente como o da sexta-feira 22 levanta dúvidas sobre a segurança de nossa base aérea, o que pode atrapalhar os lucrativos contratos que o Brasil articula.

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Do ponto de vista bélico, o fato de o Brasil adotar combustível sólido no VLS também incomoda. Essa é a tecnologia usada nos mísseis de guerra em todo o mundo. Partindo de Alcântara, o mesmo foguete que coloca um satélite em órbita pode, com pequenas modificações, ser uma arma capaz de acertar cidades como Washington, por exemplo. “Com combustível líquido, como querem os americanos, seríamos detectados durante o abastecimento”, disse um coronel da Aeronáutica que não quis se identificar. “O caso precisa ser muito bem apurado, inclusive com a participação de civis”, reclama Ênio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “As investigações já estão sendo feitas por equipes da mais alta competência e serão transparentes”, promete o ministro da Defesa, José Viegas.

Enquanto não forem descobertas as causas da tragédia, o programa espacial fica exposto a uma crônica choradeira. “O acidente mostra o desmonte e o retrocesso do programa espacial nos últimos 15 anos”, lamenta o brigadeiro Hugo Piva, coordenador do projeto até 1985. “As restrições de verbas contribuíram para o desastre”, faz eco o brigadeiro Cherubim Rosa Filho, ministro do Superior Tribunal Militar. Menos preocupada em politizar a questão, a cientista brasileira Rosaly Lopes-Gauthier, funcionária da agência espacial Nasa, sustenta que todos os países avançados na corrida espacial enfrentaram problemas semelhantes, inclusive com perdas humanas. “O Brasil já alcançou expressivo desenvolvimento e o sacrifício dessas vidas só será compensado com o esforço para lançar um novo VLS, em dois
ou três anos”, diz Rosaly. Pelos cálculos do governo, no segundo semestre de 2005, ou no máximo no início de 2006, o VLS brasileiro poderá finalmente ganhar o espaço.

A culpa é da NASA
  Em grandes projetos científicos, muitas vezes um erro tem valor didático mais determinante do que vários acertos. Que o diga a maior potência espacial do mundo, os Estados Unidos. O padrão de segurança de suas missões sofreu uma guinada em 1986, quando o país assistiu, pela tevê, à bola de fogo em que se transformou o ônibus espacial Challenger, 72 segundos após sua decolagem. A explosão, que matou os sete tripulantes, entre eles uma professora primária que daria aulas no espaço, obrigou a agência americana Nasa a suspender todos os vôos por quase três anos para se adequar às novas exigências de segurança. A investigação mostrava que os problemas administrativos da Nasa foram os responsáveis pela tragédia.

Dezessete anos mais tarde, em 1º de fevereiro de 2003, outro acidente repetiu o mesmo drama. O ônibus espacial Columbia se desintegrou ao reentrar na atmosfera, o que custou a vida dos sete astronautas a bordo. Um comitê independente divulgou na semana passada o veredicto de sua apuração de quase sete meses: a culpa é toda da Nasa. A falta de rigor em procedimentos de segurança, a terceirização dos serviços, o corte de verba e de pessoal e, sobretudo, a cultura de “autoproteção excessiva”, que se traduz em relutância para reconhecer falhas e lidar com questões de segurança, foram apontadas como as principais causas do acidente.

Do ponto de vista técnico, a nave se desintegrou por causa de um defeito na asa esquerda provocado 81 segundos após o lançamento, o que permitiu que o gás superaquecido atingisse a parte interna da nave enquanto ela reingressava na Terra. A comissão foi enfática.
Se não fizer modificações mecânicas e políticas, é questão de tempo até que os EUA testemunhem novo acidente espacial. O presidente George W. Bush prometeu atender às sugestões, mas não quer
perder tempo e anunciou que as missões voltam ao espaço no primeiro semestre de 2004.

Darlene Menconi


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