Sérgio Vieira de Mello estava destinado
a seguir os passos do pai, o diplomata Arnaldo Vieira de Mello. Depois de ter estudado no Liceu Franco-Brasileiro,
no Rio de Janeiro, foi para a França
em 1966, já pensando em entrar no Itamaraty. Mas o carioca do Posto
Seis, em Copacabana, nascido em 15
de março de 1948, teve de mudar os planos. Em abril de 1969, a ditadura militar cassou o embaixador Arnaldo, considerado por ela como “um perigoso comunista”. A injustiça levou o rapaz
a entrar para a ONU, onde se tornou o conciliador das causas ditas impossíveis, a maior figura brasileira na organização em todos os tempos. Resolver encrencas, pacificar países, salvar refugiados, correr riscos em missões nos lugares mais perdidos do
mundo e apagar os piores “incêndios” foram suas atividades durante
34 anos de serviços à instituição. O charme, o sorriso, as roupas impecáveis, que nem o calor vulcânico de Bagdá desfazia, eram marcas registradas de Sérgio Vieira de Mello. Mas o ponto mais marcante do
seu trabalho, que chamava a atenção de quem com ele conviveu, era
a capacidade de ouvir, se interessar e se entusiasmar com seus interlocutores, fossem reis, generais, diplomatas, fossem humildes refugiados que viam nele um homem confiável.

No Timor Leste, ISTOÉ foi testemunha do estilo Sérgio Vieira de Mello ao participar da inauguração da agência dos Correios de Portugal, na capital, Díli, em março de 2002. Para o país, a cerimônia representava o fim de décadas de silêncio. Durante os 26 anos de ocupação militar pela Indonésia, o Timor Leste permaneceu fechado para o mundo e a abertura de uma agência dos Correios significava muito aos 800 mil habitantes daquele que, dois meses depois, se tornaria o país mais novo do mundo. O que justificava os sorrisos de meia centena de funcionários e mais de 200 participantes da festa. Mas Vieira de Mello, o então todo-poderoso chefe da administração das Nações Unidas no Timor Leste, era quem mais demonstrava satisfação com a queima de outra etapa de uma tarefa considerada impossível. Sorriso franco, ele cumprimentava, um a um, os funcionários, perguntando, sempre em português, sobre suas atividades. Fluente em diversos idiomas, Vieira de Mello fazia questão de falar em português na ilha, pois o idioma havia sido proibido de ser falado ou escrito nos tempos da invasão indonésia.

Nomeado chefe do governo provisório pelo amigo, mentor e secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Vieira de Mello chegou ao Timor Leste no final de 1999 sob os restos dos incêndios ainda visíveis por todo o seu território. Um mês depois, já incorporava lideranças locais à administração da ONU, dando partida no bem-sucedido processo de formar um governo e um país comandado por seus habitantes. A verdadeira veneração que o povo do Timor Leste lhe devotava comprova sua capacidade, como atesta o presidente Xanana Gusmão. “Ele tornou-se um timorense, um amigo. Todo o Timor chora por ele”, afirmou Gusmão, ao saber da morte brutal do diplomata em cujo currículo tem doutorado em filosofia e em ciências humanas, ambos pela Sorbonne.

Sua carreira na ONU foi uma espécie de mapa das confusões nas quais o mundo se meteu durante as últimas décadas. Começou em 1969, no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), como editor de publicações. Sua primeira missão aconteceu em Bangladesh, que tinha ficado independente do Paquistão e virado uma terra arrasada. Também passou pelo Sudão, Chipre, Moçambique, Peru e Líbano. De 1986 a 1990, exerceu funções administrativas no Acnur, em Genebra, e de 1990 a 1993 comandou as negociações multilaterais sobre os refugiados de Ruanda, na África, onde acabara de ocorrer um genocídio. Logo se tornou um ponto de referência para os famintos da região. Daí para a frente, o brasileiro ganhou missões cada vez mais importantes. E sempre mais espinhosas e perigosas: Albânia, Camboja, Bósnia, Iugoslávia.

Promovido a secretário-geral assistente em 1996, mudou-se para a sede da ONU em Nova York, onde foi nomeado vice-alto comissário das Nações Unidas para refugiados. Três anos depois, Kofi Annan o escalou para comandar o trabalho das Nações Unidas no Kosovo. “Sabe qual é a grande diferença entre o Timor e os Bálcãs? Não é o fato de lá existir pessoal qualificado e infra-estrutura, enquanto aqui tudo estava destruído e a população quase na miséria. Apesar de tudo, aqui foi fácil. Não há o ódio mortal de lá”, comentou Vieira de Mello a ISTOÉ, em Díli. Era o auge de sua carreira. “Não sou um pacificador, sou apenas um homem que procura cumprir suas missões, que busca saber o que as pessoas desejam, deixando-as felizes e em paz”, definiu-se, pouco antes de passar o comando do país ao presidente eleito, Xanana Gusmão.

Em setembro de 2002, foi nomeado alto comissário para direitos humanos das Nações Unidas. Estava sendo preparado por Kofi Annan para substituí-lo como secretário-geral da ONU. Quase um ano depois, ao chegar em Bagdá, encontrou pela frente um velho inimigo: o ódio. No Oriente Médio, o ódio leva o verniz do fanatismo religioso. E havia outro agravante, a ausência de um governo de ordem. “O Iraque vive o caos”, afirmou. “O povo iraquiano está humilhado. Quem gosta de ver tanques de exércitos invasores em seu país? Eu não gostaria de ver isso em Copacabana”, desabafou, depois de passar mais de dois meses no Iraque. Aí veio o horror. O cidadão do mundo acabou perdendo a guerra contra a barbárie. “Perdi um amigo, alguém que encarna como ninguém os ideais do humanismo, do multilateralismo, dos direitos humanos, da paz”, afirmou o chanceler brasileiro Celso Amorim. “Ele honrou a cidadania brasileira e é motivo de orgulho para toda a Nação”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o condecorou no grau máximo, com a Ordem Nacional do Mérito. Foi também de Lula a iniciativa de providenciar todo o traslado do corpo do diplomata e de outras cinco vítimas do atentado no avião presidencial da Força Aérea Brasileira (FAB).