O efeito Lula no dia-a-dia do brasileiro foi muito maior do que poderiam imaginar seus 52,7 milhões de eleitores. A onda de esperança mexeu nos corações e mentes atormentados com o desastre da globalização. Caiu a ficha: fomos todos enganados. A nova era de consumo que surgiria no mundo inteiro virou pó – ou melhor, dívidas. Neo-liberalismo? Deus nos livre. E o brasileiro, que pensou que poderia ter tudo o que os americanos usufruíam, caiu de cabeça no endividamento, acordando para a necessidade de ensaiar uma importante mudança de valores. A eleição de Lula foi o primeiro reflexo dessa mudança na sociedade brasileira, que volta a reencontrar o prazer das coisas simples – estar com amigos, trabalhar no que gosta, cozinhar, curtir filhos, família, a casa, o jardim. Algo na linha de que, “como a felicidade não tem paciência para esperar a realização financeira, é preciso valorizar a realização possível”. Isso aparece claramente num estudo inédito realizado no Brasil sob a coordenação da Agência de Marketing, Sonhos de Consumo em Tempos de Mudança*.

“Fui eu o culpado”, brinca Guilherme Sztutman, sócio-diretor da
Agência de Marketing, que conduziu o projeto em parceria com Vera Aldrighi, diretora da Clínica de Comunicação e Marketing, e com Rafael Sampaio, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Anunciantes (ABA). Os principais resultados do estudo serão debatidos com especialistas em marketing e comunicação em um evento com
400 pessoas marcado para quarta-feira 27 na Câmara Americana de Comércio de São Paulo, com a presença de importantes nomes do
cenário empresarial, econômico e intelectual do País. O projeto, de
R$ 300 mil, foi patrocinado por cotas compradas por empresas de vários setores – entre elas Pão de Açúcar, Fiat, Kaiser, Unilever, Lojas Renner
e Paim. Vera, que coordenou o trabalho de pesquisa do começo ao fim, está nas nuvens (embora sem dormir há vários dias por causa da pesquisa). “Foi o trabalho mais interessante que eu fiz.” “Sonhos de consumo” é uma completa análise da percepção e dos sentimentos do consumidor sobre o momento que vive o Brasil, suas expectativas, desejos de mudança e disposição para participar desse processo. “O maior sonho de consumo do brasileiro é mudar o Brasil”, diz Sztutman, apontando o pagamento das dívidas como o segundo.

Felicidade – O estudo mostra que o modelo convencional de
sucesso pessoal, baseado em êxito financeiro, tende a ser atacado e estigmatizado. Jovens deixam de considerar carreiras financeiramente promissoras para sonhar com vidas mais modestas, longe do stress e da agressividade dos grandes centros urbanos. Revela que o brasileiro busca um modelo de vida e de felicidade mais acessível, menos dependente do dinheiro, de consumo e de aquisições materiais – o que indica que muitos itens de consumo ganham significados novos e outros perdem sua força habitual. Constata que há, sem dúvida, um processo de avaliação mais crítico e exigente de todos os itens e marcas de consumo. Nesse processo, as marcas com história, simbologia ou comportamento mais atacáveis são abandonadas até com certo prazer. Surpreendente é a constatação de que, na maioria dos casos, as pessoas estão mais dispostas a mudar suas vidas do que suas marcas preferidas. Quando
se separam delas é porque realmente foram obrigadas por necessidade. Em meio a tantas frustrações pessoais e tantas limitações impostas à realização dos sonhos individuais, o consumo tem representado a felicidade possível, proporcionando momentos de gratificação. Algo na linha de que satisfazer desejos de consumo traz a ilusão da felicidade,
“o prazer que nos resta”.

Mulheres – A noção de que o presidente Lula está caminhando no fio da navalha é evidente. O que se entende por “fio da navalha”: administrar com austeridade os minguados recursos orçamentários e contornar as dificuldades da agenda econômica e política, perseguindo as reformas prometidas, mas sobretudo evitando a recessão, a explosão do conflito social e a vitória do crime organizado. Aparentemente há uma sincronia entre a mudança do País e a pessoal. O próprio Lula é visto como resultado de mudança pessoal, um exemplo bem-sucedido de alguém que soube reformular seus conceitos, superando até preconceitos políticos de seu próprio partido.

As mulheres estão em alta. Tão em alta que começa a despontar um certo matriarcado (embora elas prefiram relações igualitárias), crescendo o número de famílias em que a mulher tem mais autoridade e poder de decisão que os homens. Assumindo o comando nos momentos de crise, as mulheres se impõem, especialmente no que se refere às decisões sobre dinheiro e consumo. A mulher é vista como uma força renovadora, cuja sensibilidade vai reger o novo mundo – mais verdadeiro, menos agressivo, menos dominado pela força do dinheiro, onde os fins não justificam os meios e os meios são mais justos e razoáveis. Já o casamento à moda antiga parece destinado ao fracasso. Não só porque as mulheres aspiram à realização profissional, mas porque é financeiramente inviável. Os homens não desejam mais mulheres dependentes para se casar. Eles se assustam com a idéia de bancar sozinhos todas as necessidades que hoje uma família demanda. Casar, ter filhos e constituir família não é mais para qualquer um. É, na verdade, a opção mais difícil nos tempos atuais. Envolve muito empenho, determinação, além de sorte. A falta de dinheiro e o risco do desemprego, o crescente individualismo dos cônjuges, o alto custo para ter filhos e dar uma educação de qualidade são alguns dos fatores que desencorajam o projeto de constituir família.

A importância dessa pesquisa para as empresas é enorme. É um instrumento valioso para a construção de cenários, planejamento estratégico de marketing e comunicação das marcas. “Além de revelar tendências de mudanças na linguagem e conteúdo da comunicação e gerar conhecimento em profundidade das causas e reflexão sobre a solução dos problemas de demanda, esta pesquisa é valiosa também para a avaliação da sintonia de marcas e produtos com os desejos, demandas e expectativas sobre a nova era e tem como objetivo principal promover a conscientização das equipes de marketing sobre a nova realidade do consumidor”, diz Sztutman. Não dá para ficar parado. O consumidor está, silenciosamente, fazendo uma revolução de hábitos, consumo e sonhos.

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*A pesquisa Sonhos de Consumo em Tempos de Mudança começou a ser preparada em fevereiro de 2003, com estudos exploratórios. Foram feitas 1.300 entrevistas individuais nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre

Sem rotina

Quem não conhece Tostão, um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro que se transformou num dos melhores colunistas da imprensa brasileira? Tostão leva a vida que pediu a Deus. Mudou de um apartamento de cobertura em Belo Horizonte para uma casa num condomínio em Nova Lima, quase um bairro de BH. Lê, escreve, ouve música, trabalha em casa. “Eu não tenho uma rotina de trabalho nem estou isolado como um monge. Era a opção que eu queria.” Seus sonhos – além de ler e escrever cada vez melhor – são as viagens, especialmente a Paris, viver em contato com a natureza e ter tempo ocioso para pensar. Sua casa é rodeada de jardins, linda, mas sem nenhum detalhe que mostre a opulência financeira que ele já rejeitou ao ser sondado para fazer parte da comissão técnica do São Paulo, ao ser convidado para participar de programas de televisão, ser comentarista etc. “Essa rotina de carro, trânsito, avião me consome, acaba automatizando a pessoa e isso diminui a qualidade do trabalho.”

Qualidade de Vida

A advogada Maria Inês Restiffe, 40 anos, está vivendo a sua última semana de stress. Acaba de trocar o cargo de secretária de alto nível em São Paulo por um trabalho na mesma função na concessionária de caminhões da Mercedes-Benz em Itu, a cidade que brinca de transformar tudo em gigante, até o telefone público. Mas não foi essa bobagem que atrai turistas que levou Maria Inês, seus dois filhos – Raissa, nove anos, e Renan, seis – e o marido, Cláudio Fumagalli, que já trabalha em Itu, a deixar a maior cidade da América Latina. A família quer qualidade de vida, especialmente para as crianças. “São Paulo está insuportável, muita violência, muito congestionamento, muitas dificuldades, stress”, ela diz. “Além disso, tem tudo lá, shopping centers, cinema, livrarias, clubes, bons supermercados e, o que não tem aqui, um ar mais puro, árvores, sossego.” Seu sonho de consumo é uma vida mais saudável.

Combate à exclusão

Vânia Ferro é quase um milagre. Filha de um operário que, empurrado pela falta de dinheiro, tomou uma decisão do estilo “escolha de Sofia” – o menino iria estudar até a universidade e a menina, Vânia, iria fazer apenas o primário –, ela sobreviveu a todas as exclusões, se formou em física na USP, fez pós-graduação em matemática aplicada e e se destacou na mídia como exemplo de mulher que chegou ao topo de uma empresa. Com três casamentos, duas filhas adultas e a marca orgulhosa de ter sido demitida da Volkswagen por causa da greve de 1980, Vânia é o símbolo da mulher guerreira que aparece na pesquisa. Seu trabalho hoje, como diretora-executiva no Brasil da ONG internacional Care – que promove educação e trabalho –, tem a cara da mudança que está ocorrendo. Seus sonhos: colocar bastante dinheiro na Care (tudo o que ela recebe acima de R$ 8 mil, o suficiente para cobrir suas despesas, é doado para a ONG), viajar pelo Nordeste e montar uma cerâmica. Ela se sente realizada por dar às crianças o que lhe deram na infância. Maior felicidade, impossível.

Vivendo a vida

O casal Taís e Edson Rodrigues saiu da tranquila ilha de Florianópolis, em Santa Catarina, para se estabelecer na capital paulista, no final dos anos 80. Na época, Edson veio atrás de oportunidades e, claro, dinheiro. Já Taís tinha como meta fazer um curso superior. Economista por formação, Edson perambulou por várias consultorias e veículos na área de marketing e, bem ou mal, conseguiu garantir o sustento da casa e ajudou a pagar a faculdade da esposa. Tudo conforme o planejado. “Sempre tomamos decisões conjuntas e com foco no futuro próximo”, conta Taís, que hoje atua na área de projetos culturais e tomou a frente das despesas da casa. Edson largou a economia e virou escritor e roteirista. Tem seis livros na praça, mais dois no forno. O casal reencontrou o equilíbrio. “Isso só foi possível porque nos acostumamos a um padrão de vida mais modesto e acreditamos um no outro”, diz Edson.

 

Brasil brasileiro

A pesquisa agrupou em oito segmentos os consumidores entrevistados. Você pode estar representado em algum. Confira:


Eles se mostram rebeldes e desafiam a hipocrisia dos valores da classe média conservadora. É um segmento que tende a ser um pouco mais masculino e é significativamente maior no Rio de Janeiro. Está mais concentrado nas faixas de 26 a 35 anos e acima de 45. É o maior grupo entre os que se declaram negros. Não desejam parecer sensatos, responsáveis e politicamente corretos. São radicais na defesa do direito de cada um poder ser e assumir aquilo que é ou deseja ser sem discriminação ou opressão por se desviarem dos padrões valorizados, sejam eles de beleza, saúde, idade, forma física, etnia, religião ou preferência sexual. A maioria das pessoas desse grupo votou em Lula e revela sentimentos de amor ao Brasil. Sua confiança no governo está acima da média. Entretanto, são eles os que mais concordam com a frase: “Chego a pensar que as ditaduras foram melhores para o Brasil”, um absurdo que eles usam para agredir. É o maior grupo.

Eles se definem acima de tudo pela aspiração a uma vida mais confortável e financeiramente mais estável. Lutam contra a exclusão (do que quer que seja), contra as atitudes elitistas. São os que mais reivindicam a democratização das oportunidades de crescimento material e acesso aos benefícios e comodidades do consumo. São também os que nutrem as maiores expectativas em relação ao governo. O batalhador – que se considera um representante do povão – é otimista e confiante na própria capacidade de sobreviver. É o tipo de consumidor que exige ser respeitado. Esperto, predisposto a sacar as armadilhas do consumo, identificar vantagens e prejuízos. Sabe que precisa operar milagres para fazer o dinheiro render e tirar proveito das poucas e reais oportunidades que o sistema lhe oferece.

São os que estão mais predispostos a pensar em
um modelo de felicidade menos dependente do dinheiro e consumo, sucesso pessoal e êxito material. A jovem que decide se dedicar apenas a ser mãe, o recém-formado que pensa em começar
a vida em uma cidadezinha do interior, o executivo que pensa ter um restaurante ou uma pousada na praia, todos em busca de mais realização, prazer
e qualidade de vida. Os retraídos tendem a se encolher tanto na vida pública quanto na vida pessoal. A agressividade do mercado de trabalho os assusta. O
custo para sustentar uma família e o padrão de vida a que estão acostumados tiram o ânimo, assim como a insegurança da grande cidade apavora. As pessoas desse grupo são de fato aquelas que
mais se retraem diante de uma situação que lhes parece difícil, até assustadora. Parecem desmotivadas e inseguras para enfrentar a
vida, formular sonhos e objetivos.

Têm uma mentalidade bem de classe média. São os mais pessimistas. Eles acham que tudo é uma decadência moral da humanidade e que a classe média vai acabar, está cheia de dívidas, não tem mais o que deixar para os filhos – nem educação, que é seu ponto de honra. É o grupo que tem medo de perder a sua identidade, com a perspectiva da pobreza. Eles têm argumentos para convencer que o mundo está perdido. É um segmento mais masculino, maior entre as pessoas de classe B1 com mais de 45 anos. Acham que a mulher é frágil e indefesa para batalhar posições e se lançar em conquistas na vida pública. Apesar da visão pessimista, não pedem repressão aos comportamentos que ameaçam a sociedade. Acham que os desvios da modernidade devem ser tratados com mais humanidade e menos repressão.

Esse grupo tem um contingente muito maior de mulheres do que os outros. Acima de tudo acredita que, diante do aperto e da instabilidade, a renda feminina faz a diferença num padrão de vida que pode ser confortável ou precário. A mulher está salvando a situação das famílias. O dinheiro da mulher é fundamental para a felicidade de todos, inclusive dela. Famílias com mulheres realizadas profissionalmente são mais estáveis e felizes. É também o grupo que mais combate a idéia de que as mulheres ainda são vítimas do machismo e que, diante das dificuldades e inseguranças da situação, devem priorizar a função doméstica. São uma espécie de segmento emergente, voltado para a carreira profissional. Competitivo, mas ético, valorizando a ascensão através do estudo, do mérito e da competência.

São os que mais acreditam em pôr em prática seus ideais. É um segmento mais combativo, mais reflexivo e o mais diferenciado. Têm manifestações mais complexas. São humanitários como os conservadores, combatem a corrupção, defendem a importância da educação, valorizam o debate, defendem a família. Eles se aproximam dos transgressivos porque com eles compartilham um inconformismo com a discriminação, a defesa das minorias, são contra o machismo e racismo, mas desaprovam a rebeldia destrutiva. Eles se opõem ao pragmatismo econômico dos liberais, combatem a postura interesseira, a visão impiedosa do social. Como consumidores, os ideológicos se aproximam mais das reações e atitudes apreensivas e anticonsumistas. Tendem a ser vigilantes, desconfiados e defensivos.

Diferente do batalhador, o sonhador é menos determinado a crescer e ganhar dinheiro. Está
mais voltado para a busca da felicidade pessoal,
que em boa medida se confunde com sonho de consumo. É possivelmente o tipo que mais busca realização afetiva e identidade pessoal nas escolhas de consumo. São também os que mais consomem
o conteúdo da mídia, buscando orientação, projetando ansiedades, alegrias e frustrações. Menos propensos a ter idéias próprias e firmes valores pessoais, os sonhadores parecem flutuar, assimilando facilmente novos comportamentos, desejos de consumo, modelos
de felicidade, idéias e opiniões públicas.

O liberal é típico: é a elite crítica ao governo, contra as propostas sociais. Valorizam mais o dinheiro do que os outros grupos e também são os mais frustrados com a perda de privilégios. Entre eles há o maior número de pessoas com diploma universitário, profissionais autônomos e com negócio próprio. Esse é o grupo que tem renda mais alta, classes A e AB. É o mais resistente a mudanças e o que está mais ressentido com a perda de status, prestígio, carros importados. São ambiciosos, competitivos e dinâmicos e dão muito valor ao dinheiro. Embora estejam muito preocupados com o crescimento do desemprego, da pobreza e da exclusão social, os liberais são os menos favoráveis ao que chamam de “desperdício de verbas públicas com programas assistenciais do governo”.


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