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Inventor do moderno cinema de animação, o magnata Walt Disney (1901-1966) era tão popular nos EUA que chegava a ser reconhecido nas ruas até por crianças – nada mais justo, aliás, porque foi para elas que ele dedicou o seu talento e a sua vida. Um dia, numa festa, um garoto tomou coragem e se dirigiu ao "tio Walt". Não queria um autógrafo, queria mesmo é que ele lhe desenhasse a sua maior criação, o ratinho Mickey, cujo nascimento nos anos 1920 foi o pontapé inicial do maior império de entretenimento do mundo.

Com a desenvoltura habitual, Disney passou a caneta e o papel para o seu empregado, o animador Ub Iwerks (quem na verdade deu vida a Mickey) e ordenou que ele esboçasse o bichinho. Depois Disney o assinaria e daria para o menino, testemunha da cena constrangedora. "Desenhe o seu próprio Mickey", teria dito o artista, dando as costas para o chefe. Essa passagem está descrita na biografia Walt Disney: o triunfo da imaginação americana (Novo Século, 944 págs., R$ 89,90), de Neal Gabler, que não economiza em detalhes no retrato de uma personalidade sob a qual ainda pairam muitos mistérios e controvérsias.

TRECHO DO LIVRO

"Walt adorava bancar o maquinista. Ele punha um boné e uma camisa quadriculada, sentava no carro de trás da locomotiva e acendia a máquina. Os convidados eram invariavelmente chamados para dar uma volta no trem, uma lista que incluía a cantora Dinah Shore e até Salvador Dalí"

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Disney não foi o criador de Mickey e Iwerks até ameaçou processá-lo. Que Disney era anticomunista é um fato sabido e ele nunca fez questão de ocultar. Em 1947, testemunhou perante o Comitê de Atividades Anti-Americanas, acusando de esquerdista a Liga de Mulheres Eleitoras. Pelo fato de ter recebido em seu estúdio a cineasta nazista Leni Riefenstahl e ter colocado um lobo judeu em Os três porquinhos, ainda hoje se discute se ele foi também antissemita.

Outra dúvida: ele realmente poderia ser considerado o autor de clássicos como Branca de Neve e os sete anões e Fantasia, já que apenas supervisionava sua fábrica de animações? Afora essas e outras lacunas a respeito de sua vida, Disney manipulou muito a sua própria história. A biografia de Gabler leva uma certa vantagem sobre outras existentes porque ele passou sete anos pesquisando nos próprios arquivos dos Estúdios Disney. Leu de tudo: de memorandos a cartõespostais. O que revela do homem que, segundo o renomado crítico de arte Robert Hughes, antecipou em anos a pop art já é suficiente para se mergulhar em sua caudalosa narrativa.

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TALENTO PRECOCE Na infância, Disney (primeiro à dir.) fugia de casa para brincar de teatro com um amigo. No alto, ele manobra a locomotiva Lilly Belle no jardim de sua nova casa

Tome-se, por exemplo, a infância do pequeno Walt, passada entre Kansas City e a minúscula cidade de Marceline, que ele não cansava de citar como fonte de sua prodigiosa imaginação. Esses anos teriam sido paradisíacos, não fosse um porém: seu pai era um carrasco. Movido pelas ideias socialistas (o que explicaria, mais tarde, a posição conservadora do filho rebelde), Elias Disney apostava em negócios que nunca davam certo.

Em Kansas City, decidiu investir na entrega de jornais. Mas quem tinha de acordar às três da manhã para sair de casa em casa jogando os matutinos era o pequeno Walt. No inverno, a atividade tornavase um suplício, já que o menino tinha de depositar o jornal em cada varanda e não apenas atirá-lo da rua. Algumas vezes, encontrava no canto um brinquedo abandonado: deixava os jornais de lado e esquecia do tempo se divertindo.No Natal, ganhou não um trenzinho, mas um par de botas com biqueira de metal para enfrentar as invernadas: "Não tinha uma hora em que pudesse brincar."

O hábito do trabalho precoce fez dele um workaholic. "O estúdio era o sexo. Os orgasmos estavam todos lá", disse Ward Kimball, um de seus conhecidos desenhistas. Na época de Branca de Neve, quando ele varava dias, noites e fins de semana no trabalho, sua mulher, Lillian, quase pediu o divórcio. "Ninguém jamais pagará um centavo para ver um filme de anões", praguejava. Ela se enganou, claro. Mais tarde, cansado dos filmes, Disney buscou a realização em empreendimentos como a Disneylândia e em hobbies extravagantes, como a construção de uma estrada de ferro em miniatura em sua nova casa.

"Comprei para mim um presente de Natal, algo que quis durante toda a minha vida – um trem elétrico", escreveu. Ao final da vida, doente de câncer e alcoólatra, aquele que sempre foi acusado de ter infantilizado a cultura americana costumava se lembrar da infância, segundo os mais próximos, com um "suspiro lamentoso". A imagem que vem à mente é a do personagem de Cidadão Kane e seu trenó, Rosebud. Orson Welles, é sabido, inspirouse em outro magnata, William Randolf Hearst, para fazer sua radiografia do "self made man" americano. Mas bem poderia ter se mirado em Disney.

TRECHO DO LIVRO

"Walt adorava bancar o maquinista. Ele punha um boné e uma camisa quadriculada, sentava no carro de trás da locomotiva e acendia a máquina. Os convidados eram invariavelmente chamados para dar uma volta no trem, uma lista que incluía a cantora Dinah Shore e até Salvador Dalí"