Dois momentos exemplares do diplomata Sérgio Vieira de Mello. O primeiro se deu há um ano no prédio da sede da Assembléia das Nações Unidas, em Nova York. Num elevador cheio, ouve-se um estampido e em seguida a máquina pára. As pessoas nervosas imaginam cenários paranóicos, típicos do pós 11 de Setembro. Sob a fraca luz de emergência é possível se notar que da testa de Vieira de Mello não aflora nem uma única gota de suor. Com voz calma – uma constante – ele informou que os geradores de emergência entrariam em ação em um minuto e 20 segundos. Foi o que bastou para abrandar os nervos de todos. E a previsão se provaria absolutamente correta, com o elevador se movendo no tempo estimado. Saberia-se depois que o estampido nada tinha a ver com o incidente, e fora resultado da queda de uma mesa sendo transportada por funcionários no andar superior àquele onde o elevador parou. A segunda circunstância simbólica do homem, viria logo após sua indicação – pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan – para servir de representante da organização no Iraque sob domínio americano. Uma missão de quatro meses, começada em junho último. Para ISTOÉ, Vieira de Mello disse em confidência que não queria ir a Bagdá. “Vou porque o secretário me pediu e ambos sabemos que a presença da ONU no local é fundamental para se tentar a normalização do país. Sem nossa presença, o distanciamento entre as autoridades americanas e a ONU se aprofundará e os interesses do povo iraquiano serão as maiores vítimas disto”, disse.

Os dois episódios, em sua essência, definem o homem. Na primeira se revela a lendária calma – uma frieza racional, ainda que sem prejudicar o calor humano – que contagiava pessoas, transformando as situações mais sombrias em possibilidades construtivas. Na segunda, vem à tona seu profundo senso de responsabilidade e dever – sem messianismos, mas também sem arreglos do tipo “Pai, afaste de mim este cálice”. Eram características do brasileiro Sérgio Vieira de Mello, um carioca de 55 anos, que vinha sendo cultivado para ser, ele próprio, o secretário-geral da organização à qual dedicou 34 anos de sua vida, conforme disse a ISTOÉ o ex-embaixador americano na instituição, Richard Holbrook, ecoando a voz corrente. “Sérgio era a melhor chance de vermos um brasileiro ocupando a Secretaria Geral da ONU.”

Lógica cruel – Mas essas e outras fabulosas oportunidades na vida deste homem “absolutamente impoluto e tão elegante quanto seus ternos” – nas palavras do atual secretário-geral e seu amigo particular, Kofi Annan – foram violentamente destruídas às 16h30 da terça-feira 19, quando um caminhão betoneira, carregando meia tonelada de explosivos, demoliu o Canal Hotel que servia de quartel-general da ONU em Bagdá. Foi o pior ataque a uma instalação da instituição na história. Entre os 20 mortos encontrados estava Vieira de Mello. Não morreu imediatamente na explosão nem o fez aos sussurros. Morreu ainda comandando equipes de salvamento, enterrado sob os escombros do edifício. Mais de 100 pessoas saíram feridas do atentado
covarde, como todo terrorismo, e burro, como a maioria dos ataques.
Os adjetivos têm justificativa: as cargas de arrebentação não causam danos significativos apenas aos invasores do país, a coligação anglo-americana. Também soterraram quem trabalhava para uma retirada das tropas de ocupação e imediata restituição da independência política
local. Ou seja, matou-se quem chegara para socorrer uma terra destruída e dominada. Uma missão impossível, sob todas as aparências. Mas, lembre-se, Vieira de Mello pavimentou seu longo caminho no sólido cumprimento de desafios impossíveis.

Há lógica de método nas ações terroristas no Iraque, ainda que cruel e oblíqua. Procura-se o caos completo. “As manobras querem mostrar que os Estados Unidos são incompetentes para reconstruir o país. Além disso, a revolta inicial dos filhos do regime, dos fedayins e paramilitares de Saddam Hussein deu lugar a uma causa célebre entre árabes radicais”, diz Marty Fieldman, do Instituto de Relações Exteriores, de Washington, recém-chegado de Bagdá, onde foi verificar a situação in loco. “As fronteiras do país ainda são porosas. É bom lembrar que o Iraque tem um território enorme e faz fronteira com alguns Estados que não têm boas relações com os Estados Unidos”, diz Fieldman. Um exemplo é a organização terrorista Ansar al-Islam – acusada pelo governo de ter ligações com a al-Qaeda –, que mantinha campos de treinamento no norte iraquiano. No dia 26 de março, aquelas instalações foram niveladas por intensos bombardeios de aviões americanos e mísseis de cruzeiro. Seguiu-se um serviço de “limpeza” feito por tropas curdas aliadas da coligação anglo-americana e homens das forças de elite dos Estados Unidos. O presidente Bush foi à televisão cantar vitória e anunciar o aniquilamento da Ansar al-Islam. A notícia da morte do grupo, sabe-se agora, foi extremamente exagerada.

Um novo Afeganistão – Fontes de ISTOÉ nos serviços de inteligência americanos asseguraram que o caminhão-bomba que arrasou o quartel-general da ONU em Bagdá e matou Vieira de Mello foi idealizado, preparado e pilotado por membros da Ansar al-Islam. “Este grupo tem cerca de mil homens, que fugiram para o Irã ainda durante a invasão do Iraque. Depois foram voltando aos poucos. Prendemos alguns e os interrogatórios revelaram que o grupo se pulverizou, com pequenas células espalhadas entre Tikrit
e Bagdá”, disse a fonte de ISTOÉ. O pior é que a estes, estão se juntando mujahadins vindos de todos os cantos do mundo árabe. Uma comunicação recém-interceptada pela inteligência americana constatou que a liderança da al-Qaeda convoca voluntários para fazer do Iraque o campo de batalha crucial entre o radicalismo islâmico e as forças ocidentais. Autoridades sauditas revelaram que três mil cidadãos do país cruzaram clandestinamente suas fronteiras rumo ao Iraque para se juntar à guerrilha. Da Síria, Jordânia e Irã viriam outras tropas. “A intenção é fazer do Iraque de agora o que se fez do Afeganistão nos anos 1980 durante a ocupação soviética”, conta Fieldman. A análise parece ser correta, levando-se em conta as múltiplas investidas que ganharam fôlego desde o bombardeio da Embaixada da Jordânia, em 7 de agosto. Antes de aniquilar o Canal Hotel, a guerrilha iraquiana havia explodido
no fim de semana o oleoduto que recentemente restabelecera o bombeamento de petróleo entre o país e a Turquia. Deixaram no lugar
não apenas um fogaréu difícil de controlar como um símbolo concreto
de que será parada dura recuperar a economia do país apenas com a venda de seu único produto de exportação. Um dia depois, a principal adutora de água ao norte de Bagdá também sofreria atentado,
deixando meio milhão de pessoas a seco, enquanto as ruas locais
eram inundadas pelo precioso líquido.

Rangeres de dentes – Mesmo sob esta enxurrada de más notícias, o administrador civil americano no Iraque, Paul Bremer III, mostrava otimismo obsessivo-compulsivo. Ao ser perguntado por um repórter árabe, na segunda-feira 18, se o caos não estaria atrapalhando a administração do Iraque, Bremer respondeu que não concordava com a palavra caos para descrever a situação. “A maior parte do país está em paz”, disse. Cego, louco ou mentiroso, Paul Bremer apenas repete o mantra da administração Bush. No Departamento de Defesa, não se dá mostras de que se opera no caos. Tanto que o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, comandante da equipe de falcões neoconservadores que é contra maiores participações da ONU na administração iraquiana, tem vencido o braço-de-ferro com o Departamento de Estado, que procura ajuda internacional maior para o pós-guerra.

Há rangeres de dentes entre os militares da velha cepa, que também vêem necessidade urgente de aumentar o número das tropas naquele país, hoje na casa dos 150 mil. O general da reserva William Nash, consultor do Pentágono, é um que duvida da capacidade das forças da coligação ocidental de conter a guerrilha e servir de polícia num vespeiro terrorista. “Este governo ainda vai se dar conta de que a Marinha e a Infantaria têm homens treinados para matar e destruir, e não para policiar e reconstruir nações. Estamos enfrentando problemas em vários fronts”, diz o general. “Um deles é o restabelecimento da ordem pública, incluindo o funcionamento da infra-estrutura, que é no máximo precaríssima hoje em dia. Outro ponto
é dar legitimidade política a grupos que vão governar a nação quando sairmos
de lá, e isso só se faz com uma nova constituinte. E ainda outra frente deve ser dedicada à caça e ao combate aos terroristas que hoje operam de modo efetivo no território.” Nash ainda confessa temer que o governo Bush acorde tarde demais. “Aí teremos de enfrentar um dos fronts mais difíceis,
o doméstico, com o público americano cobrando a fatura de tanto desperdício humano e financeiro. Foi assim
com o Vietnã.”

Atoleiro – No front doméstico a batalha já começou. Um grupo de veteranos de guerra e pais de soldados, chamado Bring our Boys Home, composto de 600 famílias de militares que estão no Iraque, começa a ganhar adeptos em todos os Estados Unidos. Exigem a volta de seus filhos, maridos e familiares que foram mandados para a guerra sob a impressão de que seria uma missão fácil e rápida. Sabem agora que a tarefa não tem prazo para acabar e as forças entram cada vez mais num atoleiro semelhante àquele do Vietnã. “Como pessoas que têm familiares e entes queridos nas Forças Armadas, nós sentimos que temos especial obrigação de falar contra a guerra do Iraque”, disse a ISTOÉ Nancy Lessim, presidente e uma das fundadoras do movimento. “Nós não somos como os hippies pacifistas que eram contra o governo na época do Vietnã. Somos americanos que têm feito os maiores sacrifícios pela nação e exigimos ser ouvidos”, afirma.

Figura rara – E pelo que se sente em Washington estão gritando a ouvidos mocos. Na quarta-feira 20, o próprio secretário de Defesa garantia que não haveria reforço de tropas no Iraque e que aqueles que estão servindo no país ficariam por lá o tempo necessário “para estabilizar a nação”. Ao comentar o atentado contra o quartel-general da ONU, o presidente Bush disse que aquele era um ato contra o mundo civilizado e conclamou maior ajuda internacional. Um discurso esquizóide, pois dias antes ele próprio recusara pedidos – alguns feitos diretamente por Sérgio Vieira de Mello – de maior participação da comunidade mundial. Alain Mustapha, diplomata da ONU ligado ao setor de ajuda ao Iraque, afirma que esta administração quer dinheiro e tropas de outros países, mas sem ceder maiores poderes administrativos no Iraque. “O governo Bush não quer sociedade no negócio da reconstrução do país, mas sim recursos materiais e humanos, sem ter de pagar por eles”, diz Mustapha. Uma semana antes de sua morte, Vieira de Mello foi ao Conselho de Segurança das Nações Unidas defender a idéia de que os iraquianos deveriam participar mais na condução do governo de seu país. Na capital americana suas palavras não mereceram nenhuma atenção.

Vieira de Mello era um homem elegante. Quando esteve em missão de reconciliação no Timor Leste, andava pelas ruas de Díli com roupas impecavelmente passadas. Justificava a harmonia das formas e linhas dizendo que em meio a um ambiente bagunçado sua aparência ajudava a trazer um sentido de ordem ao local. Mas era na conduta que suas virtudes de requinte apareciam de forma mais delineada. Não era homem de gritos e de antagonismos radicais . Diplomático, antes de embarcar para Bagdá, ele dizia nos corredores da ONU que aos poucos esperava convencer os americanos da necessidade da divisão de poderes no Iraque, onde não apenas outros países mergulhassem na reconstrução, mas também os iraquianos colocassem as mãos no comando de sua nação. “Em Vieira de Mello tínhamos a pessoa mais qualificada para resolver esta e outras situações difíceis. Eis aí um homem insubstituível”, disse o secretário Annan a ISTOÉ, na semana passada. Pois esta figura rara, sem paralelos, foi morta pela intransigência, pela ignorância, pela prepotência e pelo fundamentalismo. Não apenas dos radicais fanáticos de seitas que corrompem o islamismo, mas também pelos dogmas de ideólogos neoconservadores de Washington. Que não haja dúvida: Sérgio Vieira de Mello foi assassinado tanto por terroristas árabes quanto pelo sectarismo do governo de George W. Bush.

Quem disse que a gerra acabou?

Vieira de Mello foi vítima de um conflito encerrado apenas no papel. O número de soldados americanos mortos durante o conflito e após o anúncio do fim da guerra é igual: 135 a 135. Acompanhe os episódios mais importantes da ocupação

19 de março – Num “ataque de decapitação”, os Estados Unidos bombardeiam um palácio de Bagdá onde estaria Saddam Husseim. O ditador teria saído antes do local. É o início da guerra.

9 de abril – Bagdá, a capital, e o regime caem menos de um mês depois do início dos combates. A anarquia, os saques e a violência tomam conta do país.

21 de abril – O general da reserva americano Jay Garner chega ao Iraque para assumir a administração, restabelecer a ordem e comandar a reconstrução do país.

1º de maio – O presidente americano George W. Bush anuncia oficialmente o fim da guerra no Iraque.

12 de maio – Os saques continuam e a resistência armada causa muitas baixas no Exército americano. O americano Paul Bremer assume a administração geral, substituindo Jay Garner, que não tinha conseguido restabelecer a ordem.

20 de maio – O falcão Paul Wolfowitz, vice-secretário de Defesa americano, diz que as armas de destruição em massa foram utilizadas como motivo para a guerra “por questões burocráticas”.

2 de junho – Sérgio Vieira de Mello assume, em Bagdá,
o posto de representante especial da ONU, o mais alto
cargo da organização no Iraque.

15 de junho – Com quase 50 soldados mortos após o final
da guerra, o Exército americano lança a primeira de uma série
de operações para deter a resistência.

5 de julho – O escritório da ONU na cidade de Mosul é atacado com granadas. Foi o primeiro ataque às Nações Unidas no Iraque

13 de julho – O conselho interino de governo do Iraque,
patrocinado pelas forças de ocupação, é formado. Sem poder
real, inaugura os trabalhos decretando feriado nacional o 9 de abril, dia da queda de Saddam.

16 de julho – Os EUA já admitem enfrentar guerra de guerrilha. Com a morte do 147º soldado americano, iguala-se o número de baixas da primeira guerra do Golfo.

22 de julho – Na maior vitória americana desde o final da guerra, Qusay e Uday, filhos de Saddam, são mortos em Mosul.

7 de agosto – Atentado com caminhão-bomba na Embaixada da Jordânia, em Bagdá, causa
19 mortos e inaugura uma
nova fase, mais potente, de atentados terroristas.

10 de agosto – O Exército americano perde quase um soldado por dia.

16 de agosto – Como tática de sabotagem à infra-estrutura do país, explode uma bomba no oleoduto que liga o Iraque à Turquia.

17 de agosto – O cinegrafista Mazen Dana, da agência de notícias Reuters, é alvejado e morto por tropas americanas enquanto filmava uma prisão nos arredores de Bagdá. No mesmo dia, sabotagem em uma adutora de Bagdá deixa a cidade sem água.

19 de agosto – No pior atentado da história contra as Nações Unidas, um ataque suicida com caminhão-bomba destrói a sede da organização em Bagdá e mata pelo menos
20 pessoas, entre elas o brasileiro Sérgio
Vieira de Mello.

21 de agosto – O comando americano anuncia a prisão de Ali Hassan al-Majid,
o Ali Químico, o primo de Saddam Hussein conhecido por usar gás venenoso em ataques. Desde o início da guerra, 316 soldados da coalizão, entre eles 270 americanos, foram mortos. O número de vítimas americanas antes e depois do final da guerra é igual: 135 a 135. Pesquisadores independentes estimam que entre cinco mil e sete mil civis iraquianos foram mortos.

 

A ONU na visão dos radicais

O americano James Wygand, um dos mais respeitados consultores internacionais na área de gerenciamento de situações de risco, radicado há 38 anos no Brasil, acredita que o atentado contra a ONU pode trazer ensinamentos para as autoridades brasileiras. “Eles ajudam os iraquianos e muitos de seus funcionários condenam a ação americana. Mesmo assim, foram atacados. A leitura é a seguinte: para radicais e adeptos do antigo regime, o trabalho, apesar de tudo, ajuda a pavimentar o caminho para o sucesso do invasor. E isso não pode dar certo”, analisa. O consultor ironiza a sugestão do secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, de que a América Latina precisaria de “tropas externas” para combater ligações entre o narcotráfico e o terrorismo. “Isso se enfrenta com inteligência e ações policiais, não militares. O americano que chegar fardado na tríplice fronteira, dizendo ‘alô, e aêêê’ com aquele sotaque de Boston, não conseguirá nada. Ao contrário, vai virar é alvo de chumbo.”

Eduardo Marini

 

Uma perda sentida em todo o mundo

“Fiquei profundamente triste ao saber da morte de Sérgio Vieira de Mello pelas mãos de terroristas no Iraque. Ele empenhou sua vida para fazer avançar a causa dos direitos humanos. O Brasil perdeu um de seus melhores homens públicos”
George W. Bush, presidente dos Estados Unidos

“Sempre nutri uma grande admiração por Sérgio Vieira de Mello
e pelo entusiasmo e energia que demonstrou no desempenho de
suas funções. O Brasil e toda a comunidade internacional sofreram uma grande perda”
Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido

“O trabalho que Sérgio Vieira de Mello realizava no Iraque era inteligente e corajoso. Aqueles que o mataram cometeram um
crime não apenas contra a ONU, mas contra o Iraque”
Jacques Chirac, presidente da França

“Vieira de Mello foi um ilustre servidor da comunidade internacional, que representou até o supremo sacrifício todos os ideais das Nações Unidas reconhecidos pelo povo italiano”
Sílvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano

“A morte de Vieira de Mello é uma imensa tragédia. O Iraque e a ONU perderam um homem excepcional. Impressionava-me sua dedicação e seu compromisso com a reconstrução do Iraque”
Jack Straw, ministro das Relações-Exteriores da Grã-Bretanha

“Sérgio era um ser humano maravilhoso. Ele foi um soldado. Um soldado da causa da paz”
Colin Powell, secretário de Estado dos EUA

“Sérgio Vieira de Mello representava o serviço civil internacional no que ele tem de melhor. É uma perda para todos nós que sua lucidez mental – assim como sua habilidade de reconstruir sociedades estraçalhadas pela guerra – agora se tenha ido”
The New York Times, em editorial