O Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, voltou a fazer juz ao seu nome. O local, junto com outras regiões da Serra Gaúcha, responde hoje pela produção de 80% dos vinhos do País. Os bons ventos vêm de Bento Gonçalves, que fica a 120 quilômetros de Porto Alegre, onde o Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) está comandando uma verdadeira revolução na economia da região, que sofreu grandes abalos com a abertura às importações no início da década de 90. Filhos de agricultores, formados em cursos de viticultura e enologia, deixaram a enxada para se preocupar com o buquê, a cor e o corpo de grandes safras nacionais.

De família humilde do município de Guaporé, no Rio Grande do Sul, Gilberto Simonaggio, 24 anos, é um exemplo disso. Ele divide com os enólogos Adriano Miolo e Álvaro Dominguez, que também estudaram no Cefet, a responsabilidade pela produção do Lote 43, o grande reserva da Miolo, uma das principais vinícolas do País. A vida de Simonaggio começou a mudar aos 11 anos, quando ele se mudou para a casa de parentes em Bento Gonçalves. Aos 16 anos, ele conseguiu conciliar o trabalho no campo com o curso técnico e fez um breve estágio na conhecida Casa Valduga. Depois de se formar, foi escolhido para o cobiçado cargo de enólogo na Casa Miolo.

A própria história da Miolo foi influenciada pela nova safra de especialistas. Descendente de agricultores italianos que comercializavam uvas para empresas multinacionais como a Martini, Adriano Miolo conseguiu em pouco mais de uma década transformar a pequena cantina (onde se produz os vinhos) da família. Adriano foi o criador do Seleção, um vinho elaborado com o corte (mistura) de várias uvas. Lançado em 1994 com safra inicial de 40 mil garrafas, quatro anos depois o Seleção teve sua produção triplicada. Hoje corresponde a 60% da producão da empresa, algo em torno de cinco milhões de litros por ano e R$ 45 milhões de faturamento, com contratos de exportação para os Estados Unidos, Canadá e Tchecoslováquia.

O sucesso de Adriano e da Miolo não é um fato isolado. O enólogo João Valduga, integrante da quarta geração de uma família de italianos, utilizou todo o conhecimento adquirido no Cefet para, junto com o irmão Juarez, transformar a pequena propriedade do pai, Luiz Valduga, numa vinícola que é referência na produção de vinhos de qualidade no país. Numa área de dez mil hectares, os Valduga, que vendiam seus vinhos para a Forrestier e a Almadén, faturam cerca de
R$ 12 milhões por ano com a venda de 600 mil litros de vinhos. “Com a tecnologia de ponta, viramos verdadeiros milagreiros do vinho. Afinal, apesar das chuvas que atrapalham a maturação dos vinhos tintos, estamos conseguindo produzir vinhos cabernet, merlot, gamay e tannat de altíssima qualidade”, afirma João Valduga, que emprega outros oitos enólogos formados no Cefet.

O crescimento e surgimento de novas vinícolas brasileiras acabou despertando o interesse dos jovens pela enologia. Bento Gonçalves passou a fazer parte do calendário de estudantes de várias partes do Brasil e da América do Sul que disputam todos os anos as 50 vagas no curso médio de técnico em enologia e outras 25 no curso superior de viticultura e enologia do Cefet, criado em 1959 com o nome de Escola Agrotécnica. André Luiz Claussen Kalil, 16 anos, que cursa o segundo ano do curso técnico, veio de Brasília. Tatiana Selmer, 17 anos, colega de turma de Kalil, veio de mais longe: Fortaleza, no Ceará. Filho dos proprietários da Campesino, que produz vinhos em Andradas, em Minas Gerais, Michel Marlon há dois anos tenta entrar no curso superior. “O vestibular está muito concorrido. Com o aquecimento do mercado de vinhos, a enologia virou mania nacional”, diz ele.

Professor de enologia e responsável pela cantina do Cefet, onde os alunos produzem e comercializam cerca de 100 mil litros de vinho por ano, o enólogo Júlio Meneguzzo explica que a alta procura pelas vagas se deve ao fato de que todos os alunos saem da escola empregados. De acordo com Meneguzzo, em todas as 500 cantinas da região do Vale dos Vinhedos há pelo menos um ex-aluno do Cetef. “No último ano, o aluno
é obrigado a fazer um estágio em uma cantina, o que desperta o interesse das grandes empresas”, explica. Meneguzzo cita um exemplo
na própria casa. Mesmo antes de se formar, Rodrigo Meneguzzo,
16 anos, filho e aluno de Júlio, já está trabalhando na produção
de vinhos finos na Cave da Pedra, vinícola da família que está se especializando na produção de espumantes.

Diversificado – O mercado de trabalho do enólogo é amplo e diversificado. Além de produzir e elaborar vinhos finos, os formandos em enologia podem trabalhar como sommeliers em restaurantes ou no setor de turismo. Também deixam os bancos escolares habilitados a produzir conhaques, sucos, cervejas, vinagres e grapas, entre outras bebidas fermentadas e destiladas. “Normalmente os dois primeiros alunos de uma turma de 25 acabam virando enólogos, ou seja, atuam diretamente na produção de vinhos. Os outros vão trabalhar com degustação e turismo”, afirma o enólogo Márcio Brandelli, 31 anos, também ex-aluno do Cetef e um dos donos da Casa Don Laurindo. Márcio e o irmão Ademir transformaram a Don Laurindo numa butique de vinhos de qualidade. O conceito de butique é aplicado às vinícolas que reduzem ao máximo sua produção a fim de manter a qualidade.

Ao contrário das grandes vinícolas que para atender a demanda compram uvas de outros agricultores, a produção da Don Laurindo, estimada em 130 mil litros de vinhos por ano, é feita exclusivamente com uvas dos parreirais da família. Toda a produção da Don Laurindo é comercializada por meio de mala-direta ou na própria vinícola diretamente ao consumidor. A estratégia tem dado resultados surpreendentes. Seus vinhos se tornaram o grande charme dos restaurantes de Gramado, cidade turística a 120 quilômetros do Vale do Vinhedo. Numa degustação, em que as marcas dos vinhos não eram identificadas, o Gran Reserva 99, da Don Laurindo, foi eleito em maio do ano passado o melhor vinho da noite por uma confraria de amigos e enólogos que se reúnem todas às terças-feiras na badalada Casa Fasano, em São Paulo. Confiante na qualidade de seus produtos, a vinícola gaúcha lança no início do mês que vem ao preço de R$ 75 o Gran Reserva 2000, apontado desde já como um dos melhores vinhos já fabricados no Brasil.

A produção em regime familiar tem contribuído também para o sucesso da Pizzato, vinícola que nasceu em 1999 e entrou para a história ao lançar já no primeiro ano de funcionamento o excepcional e premiado Merlot 99. As 15 mil garrafas do vinho se esgotaram em poucos meses, o que acabou contribuindo para a fama do enólogo da família, Ivo Pizzato, 26 anos, também formado no Cetef. “Infelizmente, como estávamos começando, não tínhamos como fazer uma produção maior”, disse ele. Aos consumidores que não puderam degustar o Merlot 99, resta um consolo. Aproveitando-se da excelente safra de 2002, Pizzato promete lançar um vinho ainda melhor no final do ano: o Merlot 2002.