A letra da música ao lado pode não ser conhecida do grande público, mas já está fazendo sucesso na vida de Antônio (nome fictício), 14 anos, do Internato Jequitibá, em Campinas (SP). Foi em ritmo de embolada que o garoto compôs a canção que ganhou o primeiro lugar no Canta Febem, um festival interno de música criado pela Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), de São Paulo. Essa e outras medidas, como campeonatos esportivos, atividades teatrais, circenses e de formação profissional, foram intensificadas depois que a fundação se incorporou à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo em janeiro deste ano. Elas começam a despertar outros interesses em parte dos seis mil internos, dando a eles uma nova expectativa de vida.

Tanto é que a música de Antônio, Eu quero ver, será a primeira faixa do CD Por um mundo melhor, que será lançado em outubro e terá outras 17 composições, todas de autoria de internos da Febem. Elas foram escolhidas entre as 150 inscritas no concurso. Também vai soltar a voz nessa produção a adolescente Maria (nome fictício), 16 anos, que há 11 meses está no Internato Feminino Parada de Taipas, zona norte de São Paulo. “Minha mãe dizia que eu tinha uma voz bonita e um dia iria me levar para cantar no programa do Raul Gil. Agora até minhas colegas me chamam de cantora”, orgulha-se a jovem, que sonha em seguir carreira quando conseguir a liberdade.

Enquanto um grupo vai para o estúdio, outro entra em campo. São os participantes dos Jogos Abertos da Febem, um torneio que reuniu 1.600 atletas de 57 unidades do Estado para disputar modalidades como futebol de salão, voleibol, xadrez, tênis de mesa e pebolim. Durante a competição, que tinha como objetivo estimular o contato com jovens de diferentes unidades e incentivar o trabalho em equipe, o que prevaleceu foi o espírito esportivo. “Essa olimpíada criou uma expectativa boa em todos os participantes. Eles só falavam disso. Foram quatro semanas de competição sem registrar nenhum ato de indisciplina. O resultado foi tão bom que a direção da Febem pensa em investir em um projeto maior voltado para o esporte”, afirma Paulo Jaouiche, coordenador técnico pedagógico da Febem. No sábado 26, foi conhecida a campeã da competição: a equipe de Lins, interior de São Paulo.

Oficinas – Além de música, esporte e educação formal obrigatória – ensino fundamental e médio –, há também em todas as unidades
da Febem oficinas diárias de artes circenses, cênicas e plásticas,
dança, percussão, violão e cavaquinho, entre outras. Mas são
os cursos profissionalizantes que têm garantido aos internos a possibilidade de reinclusão na sociedade. São cerca de 30 cursos,
como tornearia mecânica, informática, culinária, marcenaria e elétrica, criados em parceria com vários organismos, entre os quais Serviço Nacional da Indústria (Senai) e Serviço Nacional do Comércio (Senac).
Só na unidade do Tatuapé, que tem 1.350 internos, 800 estão aprendendo uma profissão.

Mas esses jovens ainda precisam de mais apoio além dos muros. A falta de suporte fora da instituição leva muitos deles à reincidência. Hoje, 20,1% dos que deixam a Febem retornam. Essa realidade, porém, pode começar a mudar. De acordo com Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, presidente da Febem, o órgão também está fazendo parcerias com empresas para contratação desses futuros profissionais. Organizações como Fundação Bradesco, Centro de Integração Empresa Escola, Instituto Paula Souza, Fiesp e Imprensa Oficial do Estado estão garantindo formação e trabalho a ex-internos. Recentemente, a instituição também fechou parceria com a rede McDonald’s, que vai treinar e contratar mil jovens egressos da Febem. A experiência está sendo testada em Ribeirão Preto e deve ser estendida a todas as unidades da rede no Estado.

Estigma – Difícil acreditar que iniciativas como essas aconteçam em uma instituição desacreditada, acusada de maus-tratos, torturas e de não cumprir determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente. A Febem, que só neste ano registrou mais de 15 rebeliões, quer superar seu principal estigma – de “escola do crime” – e provar que não é só de rebeliões que vivem os internos infratores. A pedra no sapato do governo, o Complexo de Franco da Rocha, responde por 90% dessas rebeliões. O motivo é o número elevado de detentos, principalmente nas unidades 30 e 31 onde estão internados 400 jovens, a maioria com idades acima de 18 anos, reincidentes em delitos graves. Essas duas unidades possuem oito módulos com 80 internos em cada um deles. O ideal é ter no máximo 40 por módulo. “A prioridade é desativar essas duas unidades e transferir esses jovens para novos centros com espaço para 40 internos por módulo. Até o final do ano, esses dois espaços serão extintos”, garante o presidente Costa.

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É justamente uma nova chance que acalenta o sonho de Amilton (nome fictício), 18 anos, que há um ano e meio está internado na unidade Tatuapé, zona leste de São Paulo. Filho de pais separados – a mãe também cumpre pena no presídio feminino na capital –, o jovem saiu de casa aos dez anos e passou a infância perambulando pelas ruas. Mas ele acredita que dessa vez poderá dar um novo rumo à sua vida. “Vi muito amigos morrerem, inclusive uma namorada. Escapei por pouco. Agora, quando sair daqui, quero reencontrar minha mãe e recomeçar nossas vidas em outra cidade. Aprendi a fazer muita coisa aqui e sei que posso viver lá fora. Tenho planos de fazer e vender salgados para festas”, planeja ele, enquanto prepara uma receita de pão durante uma aula de culinária com mais cinco colegas.

Mas, apesar de todas essas iniciativas, a vida por trás dos temidos muros da Febem não deixa de ser assustadora. É preciso vontade e coragem para mudar e não voltar ao mundo do crime. É o que conta o universitário João Fernandes dos Santos Rodrigues, 20 anos, que foi internado quatro vezes, o que soma dois anos e meio na instituição. As oportunidades são difíceis, e poucos resistem aos “nãos” que recebem. “Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos e fui morar cada hora com um parente. Comecei a cometer delitos e fui parar na Febem. Perder a liberdade é um sofrimento muito grande, mas isso me fez crescer. Na última vez que saí prometi a mim mesmo que iria fazer algo diferente”, conta. Ele conseguiu. Voltou à escola, terminou o ensino médio e entrou na Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec), que tem um dos vestibulares mais concorridos da capital paulista. “Hoje, faço planos e sei que posso realizá-los”, afirma João Fernandes, que cursa o segundo ano de informática. Agora, ele foi convidado a dar cursos de confecção de bolas para os internos do Tatuapé. Exemplos assim fazem acreditar que é possível transformar a realidade.


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