Diferentes em natureza, dois episódios memoráveis tiveram o poder destrutivo e renovador de um terremoto. A bala que matou o ex-beatle John Lennon, em dezembro de 1980, enterrou junto o sonho de um mundo embalado pelos ideais de paz, amor e igualdade dos anos 60. Quase duas décadas depois, em novembro de 1999, os protestos de ONGs contra a globalização ocorridos durante a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, deram início a uma nova era, que uniu a sociedade civil mundial contra
as políticas do livre comércio. Uma dessas vozes dissonantes é a do físico austríaco Fritjof Capra, de 74 anos, que considera esses dois momentos como divisores de água na história da humanidade. O cientista que ganhou notoriedade ao traçar paralelos entre o misticismo oriental e a ciência moderna virou educador ambiental. Capra, que vive em Berkeley, na Califórnia, EUA, já veio ao Brasil três vezes. Durante esta semana, ele fala em São Paulo e Brasília, onde se reúne com o governo, empresários e ONGs para discutir os rumos do País. Antes de embarcar, Capra falou a ISTOÉ.

Istoé – Quais projetos o sr. mostrará ao Brasil?
Fritjof Capra
– Conheci a ministra do meio ambiente, Marina Silva, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e me comprometi a levar especialistas de todas as partes do mundo para uma série de encontros com o governo Lula, empresários e a sociedade civil. São pessoas que vão mostrar projetos que deram certo trazendo renda, criando empregos e preservando a natureza. É uma troca de idéias nas áreas de educação, energia, agricultura e projetos ecológicos. A esperança é que se transforme em políticas concretas para o meio ambiente.

Istoé – Quais ações imediatas o sr. defende para o Brasil?
Capra
– É preciso uma mudança da agricultura mecanizada de larga escala para a agricultura familiar que pratique agricultura orgânica. Em energia, há novas tecnologias para aumentar a eficiência. Nos projetos ecológicos, que são beneficiamento dos produtos naturais para o comércio, é preciso de muita mão-de-obra. A reciclagem, por exemplo, é uma ação local em pequena escala que cria empregos. Minha especialidade é pensar como as coisas se interconectam.

Istoé – Se o sr. tem essa visão geral, para onde
caminha a humanidade?
Capra
– Vejo dois caminhos que começaram na virada do século. Um é a ascensão da economia global, na qual especuladores investem seu dinheiro em qualquer lugar do mundo. Esse sistema funciona de acordo com as regras do livre comércio impostas pela OMC, em que fazer dinheiro tem precedência sobre tudo. É mais importante do que justiça social, proteção do meio ambiente e da democracia. Outro caminho é a ascensão da sociedade civil como uma rede mundial de ONGs que promove a ecologia sustentável e a dignidade humana. As ONGs são eficientes em trocar informações entre si e mobilizar pessoas. A sociedade civil começou a ser eficaz em 1999, em Seattle. Desde então, fez três reuniões em Porto Alegre. O presidente Lula foi a todas, muito antes de eleito. Ele é bem visto pela sociedade civil mundial.

Istoé – Alguns críticos dizem ser excessivo o papel das ONGs no governo. O sr. concorda?
Capra
– Hoje há três centros de poder. Um é o governo, o segundo
são as empresas e o terceiro é a sociedade civil, que precisam colaborar entre si. A esperança é que isso dê certo no Brasil. Se acontecer,
será a primeira vez no mundo. Defendo um remanejamento fiscal,
que puna quem provoque poluição, degradação dos recursos naturais
e contaminação tóxica.

Istoé – Por que a civilização ocidental recorre cada vez mais ao misticismo e à meditação?
Capra
– A experiência mística é importante para compreender a natureza profunda das coisas. E a ciência é essencial para a vida moderna. Precisamos de uma interação dinâmica entre intuição e análise. Há mais pessoas atraídas para a meditação porque o trabalho deixa pouco tempo livre. Hoje espera-se que as pessoas estejam disponíveis a todo o momento. Se não estão no escritório, estão no e-mail ou no celular. Estão sob enorme pressão e precisam de tempo para refletir, porque isso é uma qualidade básica da consciência.

Istoé – O homem precisa fugir das armadilhas
de sua própria criação?
Capra
– O trabalho está cada vez mais computadorizado e a economia, mais rápida. Quem permanece com emprego é obrigado a trabalhar como besta de carga. Mas podemos fazer escolhas. Não uso e-mail, não tenho celular nem televisão há 20 anos. Minha mulher e eu educamos nossa filha, hoje com 17 anos, sem tevê. Hoje ela é muito mais crítica do que outros adolescentes. Lemos muitos livros, jogamos baralho, fazemos coisas que nossos pais e avós faziam em família. Levei muitos anos para me libertar. Não foi fácil. O mais difícil foi dizer não a projetos interessantes para não me sobrecarregar. Apesar disso, sou muito conectado. Só limito o acesso das pessoas, crio tempo livre.