O combate feroz no Congresso em torno da reforma da Previdência foi surpreendentemente interrompido na noite da quarta-feira 6 para um minuto de silêncio que juntou parlamentares de todas as ideologias. Em momento diverso, pela primeira vez que se tem notícia no futebol, um locutor da Rede Globo ignorou solenemente um gol no Campeonato Brasileiro – o do Goiás sobre o Vasco – para ler uma biografia. Na mesma noite, acompanhado de cinco ministros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva suspendeu a agenda e, no dia seguinte, embarcou para o Rio de Janeiro com os presidentes da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, e do Senado, José Sarney. Tanta homenagem e movimentação guardava um motivo especial: a morte do jornalista e empresário Roberto Marinho, presidente das Organizações Globo, o maior império de comunicação do Brasil.

Roberto Marinho morreu aos 98 anos, às 22h, no hospital Samaritano,
em Botafogo, zona sul do Rio, de edema pulmonar provocado por uma trombose. Deixa três filhos – Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto –, 11 netos, cinco bisnetos e a viúva do terceiro casamento, Lily. O velório começou discreto na madrugada, apenas com a família reunida na famosa mansão no bairro do Cosme Velho. Às 10h da quinta-feira 7, no entanto, as portas se abriram para a despedida de amigos. Empresários, artistas e políticos, incluindo inimigos ferozes como o ex-governador Leonel Brizola, bateram ponto na última homenagem a Marinho. A Companhia de Engenharia de Tráfego interditou ruas para o cortejo até o Cemitério São João Batista, em Botafogo, onde o corpo – que seguiu num carro da Globo – foi sepultado às 16h, diante de cerca de mil pessoas. O arcebispo emérito do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales, fez a oração. Nunca o funeral de um empresário juntou tantas celebridades. Nas
coroas de flores e declarações de famosos, um número incontável de superlativos tentava dimensionar a importância e as façanhas de Roberto Marinho. E decididamente não foram poucas.

Da modesta casa no bairro do Estácio, onde nasceu em 3 de dezembro de 1904, até mobilizar o País com seu funeral, Roberto Marinho ergueu um patrimônio pessoal de US$ 1,5 bilhão – segundo a revista Forbes –, um conglomerado de mais de 100 empresas com faturamento anual de US$ 2 bilhões e um poder arrasadoramente influente nos diversos rumos da República. A trajetória de sucesso começou com seu pai, Irineu Marinho, ao criar em 1911 o jornal carioca A Noite, vendido em 1925 para fundar o diário O Globo. Irineu morreu
de enfarte aos 49 anos, 21 dias depois de lançar seu novo jornal. O primogênito, Roberto, de uma penca de cinco irmãos, assumiria a
direção do jornal em 1931.

Ao longo da carreira de homem de comunicação, Marinho manteve estreita proximidade com o poder. Apesar de apoiar Getúlio Vargas em 1930, lembrava a ocasião em que na redação de O Globo deu um tapa num censor do Estado Novo, indo em seguida jogar bilhar no bar da esquina. Com os generais da ditadura militar seu comportamento foi bem mais cauteloso. Mesmo assim não deixou de lutar contra a censura. Em 1973, reagiu a uma ordem da Polícia Federal e publicou na manchete do jornal o assassinato do presidente do Chile, Salvador Allende. Quando o general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do marechal Castello Branco, pediu a cabeça de marxistas de O Globo, Roberto Marinho retrucou com uma de suas frases mais célebres: “Dos meus comunistas cuido eu, general.” Não raro também interferia para evitar a censura à produção artística da televisão. Em 1996, o falecido dramaturgo Dias Gomes afirmou: “Ele nos garantiu apoio em momentos desanimadores, como nos diálogos com censores que lembravam O processo, de Kafka, tão intrincadas eram aquelas reuniões.”

Sucesso – Mas foi na ditadura que o poder de Marinho se concretizou. No ano de 1965, já com o jornal consolidado e uma influente rede de rádios, deu à luz a TV Globo (só mais tarde virou rede), como lembra o humorista Renato Aragão. “Na época, ele tinha 60 anos, idade que muita gente acha que passou da hora de se aposentar, e ainda assim criou a maior televisão do Brasil.” A Globo se espalhou rapidamente pelo País e ganhou o mundo com novelas de enorme audiência e indiscutível qualidade técnica. Grande parte do sucesso da Rede Globo se deu sob a direção da dupla José Bonifácio de Oliveira Sobrinho e Walter Clark, os lendários Boni e Clark, como ficaram conhecidos na década de 1970. Hoje, um dos símbolos do gigantismo é o Projac, cidade cenográfica de Primeiro Mundo, instalada desde 1995 em Jacarepaguá, zona oeste carioca, numa área de 1,3 milhão de metros quadrados, equivalente a oito estádios do Maracanã. Por todos estes empreendimentos, em 1999 Marinho foi eleito por ISTOÉ O Brasileiro do Século, categoria Comunicação.

Mas a relação entre o sucesso da Globo e o apoio aos militares sempre alimentou a polêmica e a mitologia em torno de Roberto Marinho. Certa vez, disse que não sabia se seria lembrado pelas qualidades vistas pelos amigos ou pelos defeitos denunciados pelos inimigos. É o drama entre mal e bem, típico dos mitos que se agigantam no imaginário popular. Para alguns, Roberto Marinho sustentou a ditadura. Para outros, foi o verdadeiro construtor da integração cultural do País. Sua condição de protagonista singular na história, porém, é unanimidade, como prova o depoimento do presidente Lula. “Nosso amigo Carlito Maia dizia que tem gente que vem ao mundo a passeio e gente que vem a serviço. Ele veio ao mundo a serviço”, declarou Lula, outrora preterido por Roberto Marinho nas eleições nas quais fora derrotado por Fernando Collor (1989) e por Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998).

Filhos – Na oposição, nenhum político combateu tanto Roberto Marinho e a Rede Globo quanto Leonel Brizola. “Ele mereceu no curso de sua vida a admiração de todos os brasileiros pela capacidade, pelo ardor com que defendeu suas idéias”, rendeu-se o ex-governador. O império construído – superior ao que Assis Chateaubriand montou nas décadas de 1940 e 1950 – não era o único orgulho do empresário. Em entrevista a ISTOÉ, em 1996, ele declarou que a obra da qual mais se vangloriava era de outra ordem: “A união entre os meus filhos.” Durante toda a vida, fez questão de manter reuniões diárias com eles. O hábito só ficou menos frequente na década de 1990, quando os filhos – que a exemplo dele começaram a vida profissional na reportagem de O Globo – já dirigiam segmentos das organizações por ele presididas.

"Deus" – O jornalista Roberto Marinho, como gostava de ser chamado – profissionais da casa preferiam doutor Roberto ou simplesmente “Deus” –, viveu intensamente. Dono de uma vitalidade que o envaidecia, praticou hipismo até 89 anos. Só interrompeu o esporte porque numa queda quebrou 11 costelas. Também fazia mergulho e caça submarina. A vaidade intelectual se afirmou em 1993, aos 88 anos, quando entrou para a Academia Brasileira de Letras. Solteiro até os 40, morou muito tempo sozinho numa casa próxima ao Cassino da Urca. Os amigos lhe atribuíam a fama de galanteador, especialmente por causa do gosto pelas bailarinas. Era figurinha fácil na vida social e boêmia do Rio dos anos 1930. Viveu grandes amores. Do primeiro casamento, em 1946, com a elegante e culta Stella Goulart, teve seus quatro filhos: Paulo Roberto, que morreu aos 19 anos num acidente de automóvel, em 1970; Roberto Irineu, 56 anos; João Roberto, 50; e José Roberto, 47.

Stella transformou o jornalista em amante das belas artes. O casal se separou em 1970, mas alimentou a amizade até 1995, com a morte de Stella, em Nice, na França, depois de um assalto seguido de um derrame. Da segunda mulher, Ruth, Roberto Marinho se divorciou em 1989. Foi quando ele se casou com a também milionária Lily de Carvalho, um affair que chegou a ser chamado de “romance da década”. Dezesseis anos mais jovem, Lily trocou as badalações pelo aconchego de um amor que deu os primeiros ares de sua graça em 1939, um ano depois de ela ter sido Miss Franca. O namoro nos turbulentos anos do Estado Novo não foi adiante porque, segundo o próprio Marinho, ele estava “casado com o trabalho”. Quando se reencontraram, Lily já era viúva do empresário Horácio de Carvalho, também do ramo de comunicações. Passaram os últimos 14 anos na discrição da casa no Cosme Velho, em meio a um acervo de 700 obras de arte e a uma deslumbrante criação de flamingos.

 

Amigo oculto

Ele nunca exerceu cargo político, mas teve força decisiva na eleição de presidentes e na escolha de ministros. Sua intimidade e influência nos meandros palacianos era tão grande que, não raro, se tornava amigo próximo das cabeças do poder. A história também prova seu trânsito livre nos bastidores políticos. Em 1984, o candidato Tancredo Neves foi visitá-lo para “buscar apoio de um homem lúcido”. Nove anos depois, Marinho reconheceu sua própria importância na trágica eleição de Fernando Collor, que ampliou a vantagem sobre Luiz Inácio Lula da Silva no último debate da Rede Globo. O apoio a Collor, contudo, não o impediu de ter um longo encontro com Lula durante a campanha, quando tratou o petista de “companheiro Lula”. Passado o collorido mar de lama e a inexpressividade do governo Itamar Franco, Marinho foi o único empresário de comunicação a se reunir com Fernando Henrique Cardoso no Palácio da Alvorada, na mesma semana da posse, em 1995.

Até Fidel Castro tentou seduzir o poderoso global, presenteando-o com um casal de flamingos para embelezar ainda mais a confortável e charmosa mansão no Cosme Velho, zona sul do Rio de Janeiro, ponto de romaria de poderosos. Durante o regime militar, os presidentes Humberto Castello Branco, Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo dificilmente visitavam o Rio sem passar pelo Cosme Velho. Marinho não gostava muito do estilo de Costa e Silva. Encontrava no general-presidente demonstrações de insegurança. No governo Figueiredo foi convidado a praticar hipismo com ele, mas preferiu evitar relações íntimas com o remanescente da ditadura por não suportar o estilo truculento do general, que confessava preferir o cheiro dos cavalos ao do povo.

Antes da ditadura militar, manteve “relações cordiais” com Juscelino Kubitschek. Em relação a João Goulart tornou-se opositor a ponto de sofrer ameaças do almirante Cândido Aragão. Leal a Jango, Aragão pretendia invadir a redação do jornal O Globo com os fuzileiros que comandava, em março de 1964. Após a posse do general Castello Branco, Marinho passou a ter um relacionamento bem próximo do Palácio do Planalto. Recentemente, até com Lula, que, sabe-se, em eleições anteriores não ganhou nenhum apoio das Organizações Globo, Roberto Marinho estava em paz. O maestro do poder sabia muito bem reger suas apostas.

Hélio Contreiras