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“Fui empurrado para longe e quando consegui levantar vi
um clarão forte. Depois, veio a chuva preta. Desesperadas por água,
as pessoas engoliam a radiação que vinha das nuvens”
Takashi Morita, fundador da Associação Hibakusha Brasil pela Paz

As vítimas do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki sempre recusaram a denominação de “sobreviventes”. Elas entendem que esta palavra dá uma ênfase exagerada ao fato de elas estarem vivas, o que poderia sugerir um certo desrespeito para com os mortos sagrados. Assim, num exemplo característico do extremado recato japonês, quem escapou com vida daquele inferno adotou um termo mais neutro para se qualificar. Elas se chamam apenas de “hibakusha”, que significa, literalmente, pessoa afetada pela explosão. Takashi Morita é uma delas. Aos 88 anos ele vive no bairro paulistano de Jabaquara e se considera um abençoado por Deus. Chegou ao Brasil em 1956 com a mulher e dois filhos. Carregava um diagnóstico de leucemia, junto com a esperança de que poderia recuperar a saúde mudando de ares. A leucemia jamais se manifestou por aqui. Ativo, em 1984 ele fundou a Associação Hibakusha Brasil pela Paz, que reúne 120 sobreviventes da tragédia e seus descendentes. Hoje, Morita se vê novamente às voltas com o drama do perigo nuclear: seu neto Victor Massamichi, 33 anos, mora em Tóquio com a mulher.

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"Os sobreviventes de Hiroshima sempre se
posicionaram contra o uso da energia nuclear"
Na foto, Morita, quando era da Polícia Militar japonesa

ISTOÉ – Onde o sr. estava e o que fazia em Hiroshima no dia da explosão da bomba?
Morita – Lembro de cada detalhe daquele dia como se fosse hoje. Vi, vivi e senti tudo de perto. Foi o inferno. Na época, eu tinha 21 anos e integrava a Polícia Militar japonesa. Estava em missão havia dois dias em Hiroshima, que ainda não tinha sido bombardeada como outras cidades. Quando a bomba explodiu, eu estava a apenas 1,3 quilômetro do hipocentro. O dia estava ensolarado e muito bonito. Havia muitas crianças na rua. Fui empurrado para longe e quando consegui levantar vi um clarão forte. Depois, veio a chuva preta. Desesperadas por água, as pessoas engoliam a radiação preta que vinha das nuvens porque achavam que aquilo iria acabar com a sensação de sede que sentiam. Ao meu redor, várias pessoas, inclusive crianças, gritavam por socorro. Eu só conseguia pensar: a maioria morreu e eu me salvei. O terror era absoluto. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo.

ISTOÉ – Como o sr. se salvou?
Morita – Minha sorte é que estava de costas para o lado da explosão e fardado. A vestimenta e o boné que usava me protegeram. Tive apenas queimaduras fortes no pescoço. Vaguei pelas ruas arrasadas de Hiroshima. Minha única preocupação era salvar a vida de quem podia. Por onde passava no centro da cidade, o rastro era de destruição. Até hoje sou capaz de lembrar do cheiro fétido dos cadáveres amontoados pelas calçadas. Lembro da pele das pessoas caindo e da fome e sede que sentiam. Tudo o que eu queria era prestar socorro às vítimas. Fiz até o parto de uma mulher no meio da rua. Só depois de dois dias é que fui tratar dos ferimentos que já estavam infeccionados na minha nuca.

ISTOÉ – Muitos japoneses sentiam vergonha por terem sobrevivido à bomba. O sr. tem esse sentimento?
Morita – Quem sobrevive a isso carrega pelo resto da vida a radiação e a memória de todo aquele horror. Mas não sinto remorso nem culpa. Ajudei a salvar a vida de muita gente. Considero-me abençoado e tenho muita motivação para viver. Acho que Deus me deixou vivo por uma missão: falar para as pessoas sobre os perigos da radiação. As pessoas precisam aprender definitivamente que a humanidade e a energia nuclear não podem caminhar juntas.

ISTOÉ – Como o sr. vê hoje o risco nuclear em Fukushima?
Morita – Os sobreviventes de Hiroshima sempre se posicionaram contra o uso de energia nuclear. Chegaram a nos chamar de arcaicos e antiquados por isso. O governo sempre falou que era seguro. Onde está agora essa segurança? O uso de energia nuclear é uma ameaça silenciosa.

ISTOÉ – O sr. acha que o Japão vai conseguir se recuperar de toda essa tragédia?
Morita – Mais uma vez, os japoneses vão trabalhar muito e conseguirão reconstruir o país. Nosso povo é unido. A vida vai continuar.

ISTOÉ – O seu neto, Victor, está em Tóquio neste momento e já falou para o sr. que não vai abandonar o país. Sente medo de que aconteça alguma coisa com ele?
Takashi – Deus vai cuidar dele como cuidou de mim.

 

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