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DESCASO
Abaixo, encanamento apoiado no cais

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Centro histórico de Salvador: arqueologia ignorada

Quem passa pela região portuária do Rio de Janeiro deve atentar para as escavações feitas na avenida Barão de Tefé. Ali, das obras de revitalização do porto, emergiu um tesouro arqueológico localizado 2,5 metros abaixo do asfalto. Trata-se de um cais construído em 1843 para receber a italiana Teresa Cristina Maria, que viria a se casar com dom Pedro II e se tornar imperatriz do Brasil. Com inestimável valor histórico, o cais se revelou um exemplo do descaso com a preservação da memória do País. A escavação trouxe à luz uma plataforma de blocos de granito – projeto, à época, assinado pelo paisagista francês Grandjean de Montigny –, objetos que mostram o cotidiano do Rio no século XIX (leia quadro à págs. 55 e 56) e expôs também canos, tubulações e fiações de empresas fornecedoras de serviços de luz, eletricidade e telefonia que simplesmente ignoraram a estrutura histórica ao escavar o subsolo.

“É escandalosa a falta de cuidado e o fracasso educacional referentes à memória da nação. Vemos aqui como engenheiros, arquitetos, mestres de obras, empresários e poder público sustentam esse ‘vandalismo’ contra a história”, diz o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), subcoordenador das escavações do Porto Maravilha, nome do projeto de revitalização que deverá investir R$ 8 bilhões até 2016. Segundo ele, há, por exemplo, encanamento da Light, a companhia de energia elétrica carioca, escorado em cima da construção do século XIX. “A Light deslocou pedras do cais”, garante Chevitarese.

Desde 2002, a portaria 230 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) estabelece que, para ocorrer uma intervenção no subsolo, como na construção de prédio, é indispensável um programa de pesquisa arqueológica do local. Além da Light, escavaram na área do Cais da Imperatriz a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) e a empresa de telefonia Oi. Todas instalaram suas redes ali – e, segundo Chevitarese, provavelmente viram o cais, que, no entanto, só foi reapresentado ao País agora. Segundo a Cedae, as obras para o assentamento do tronco coletor de esgoto da estação de tratamento na Barão de Tefé foram iniciadas em 2006. Dois anos depois, a companhia teria descoberto “o Cais da Imperatriz acidentalmente” e informado a Secretaria de Obras da prefeitura. Aqui está o equívoco que serve de exemplo da falta de educação patrimonial no País. Era o Iphan que deveria ser informado.

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A Oi comunicou que a rede instalada no endereço do cais é anterior à década de 1960. Mais: que nos últimos 40 anos não foram identificadas estruturas de valor histórico em suas obras e solicita licenças aos órgãos públicos para realizar qualquer intervenção no subsolo. A Light não soube responder por que, ao instalar sua rede em cima das pedras de granito, não informou o Iphan sobre o achado. Também não soube dizer quando efetuou a escavação e se calou quando interrogada se seus funcionários recebem treinamento no caso de se depararem com algo relevante em seus trabalhos debaixo do solo. “Todas as intervenções da Light em vias públicas são realizadas de acordo com processos de licenciamento previamente aprovados pelos órgãos responsáveis das prefeituras”, informou a empresa, por meio de sua assessoria. O Iphan do Rio de Janeiro, órgão competente para cuidar desses achados históricos, diz não ter sido comunicado de nada. “Não tenho notícias de que essas empresas tenham atuado, recentemente, na área do porto”, diz o superintendente, Carlos Fernando Andrade.

Informações desencontradas e jogo de empurra à parte, especialistas em preservação do patrimônio dizem que o problema é muito maior. O próprio Iphan não educa as empresas em como proceder para que se evite a destruição de uma história escondida na terra. “Não temos essa política preventiva”, admite Andrade. No Exterior, há leis, políticas de incentivo e consciência por parte da população e do Estado para preservação de bens históricos e culturais. “No Brasil, essas variáveis não coexistem de forma harmônica”, diz o urbanista Jonas Rabinovitch, conselheiro das Nações Unidas para políticas públicas e desenvolvimento, baseado em Nova York há quase duas décadas.

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PRESERVADOS
Muralha do século XVIII, no Canadá, e restos de navio nos escombros do World Trade Center (NY)

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Segundo ele, há casos de países em desenvolvimento, como México e Egito, onde o turismo é uma das maiores fontes de renda e emprego e, consequentemente, a preservação histórica também é uma questão econômica.

Em Nova York, as obras de recuperação do World Trade Center foram suspensas no ano passado quando emergiram do solo restos de um navio mercante do século XVIII. Data do mesmo período uma muralha de quatro quilômetros que circunda uma área conhecida como velha Québec, no Canadá. Havia sido construída pelos antigos colonizadores franceses como forma de proteção e, preservada desde então, é visitada por turistas do mundo inteiro. São exemplos positivos de dois países que conseguiram unir desenvolvimento e preservação, algo difícil de ocorrer no Brasil, onde esses movimentos parecem ser excludentes.

Aqui, parece que vivemos uma dicotomia: ou preservamos e a obra nunca mais sai do papel ou avançamos e o passado é enterrado. O diálogo entre o preservar e o avançar é movido por um processo ideológico nascido na segunda metade dos anos 1950 e imprime uma maneira de olhar para o passado como algo que tem de ser superado. “É preciso aprender a preservar e assumir a preservação como algo bom e fundamental, ou vamos continuar assistindo a episódios como o do cais”, reclama o historiador Chevitarese, para quem a escola tem um papel importante na criação dessa consciência.

Em Ouro Preto, por exemplo, os casarios chacoalham toda vez que caminhões trafegam pelas ruas da cidade mineira. Em São Paulo, bairros operários apodrecem sem socorro. Na Bahia, nas primeiras etapas da revitalização do Centro Histórico de Salvador, em 1992, segundo Carlos Etchevarne, professor de arqueologia da Universidade Federal da Bahia, foi desconsiderado o potencial arqueológico daquela área, tomada por casarões desde o século XVII.

“Considerando a velocidade com que os primeiros casarões foram restaurados – coisa de meses –, é impossível que se tenha feito algum trabalho arqueológico. Se foi feito, não foi de forma correta, pois não há nada publicado”, diz ele. Naquela época, os quintais dos casarões serviam de depósito de objetos descartados e, portanto, guardavam informações do cotidiano da sociedade naquele período. “É possível que objetos históricos tenham sido negligenciados”, admite Carlos Amorim, superintendente do Iphan baiano. “Mas isso não foi regra no processo de revitalização.”

Muito ainda está para ser descoberto na zona portuária do Rio. No Cais da Imperatriz, os arqueólogos conseguiram escavar mais abaixo e encontraram um piso de pedras irregulares que sugere fortemente se tratar do Cais do Valongo, onde um milhão de escravos aportaram. Um exemplo de como a monarquia tentou jogar para debaixo do tapete a memória de um país miserável. Nada muito diferente do que ocorre hoje.

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