Os inimigos árabes dos Estados Unidos parecem ter a vocação de cabos eleitorais do Partido Republicano. Os episódios da semana passada dão força a esta tese. Até a segunda-feira 21, o presidente George W. Bush e sua entourage vinham enfrentando um turbilhão de crises: a descoberta do uso de informações falsas no apelo presidencial pela guerra contra o Iraque, as pesadas baixas de soldados americanos naquele país (200, até aquele dia), a virtual e implacável guerra de guerrilhas dentro do suposto ex-reinado de Saddam Hussein, tudo desembocando no absurdo déficit orçamentário americano – US$ 455 bilhões, sem contar os US$ 4 bilhões mensais gastos com a ocupação iraquiana. O estigma da falta de credibilidade do governo W. Bush contaminava a Casa Branca. Como resultado dessa mistura explosiva, a popularidade do presidente teve a maior queda em dois anos: apenas um quarto da população acreditava que a administração dos problemas no Iraque estava sendo bem conduzida. E somente 55% dos pesquisados ainda apoiavam Bush de modo geral (uma queda de 25% em três meses). Mas, na terça-feira 22, uma saraivada de balas na cidade de Mosul, ao norte do Iraque, acabaria por reverter esse quadro. Um comando especial da 101ª Divisão Aerotransportada ianque cercou um palacete no bairro de al-Falah e despejou chumbo grosso. Seis horas depois, dentro do imóvel, pertencente a um sobrinho de Saddam, encontraram mortos os herdeiros do regime, Udai Hussein, 39 anos, e Qusai Hussein, 37, além do filho deste último, Mustafá, 14, e de um guarda-costas. Eram tirados do baralho de procurados os ases de copas e paus. Embora os iraquianos ainda duvidem da morte dos herdeiros de Saddam, a notícia foi recebida em Washington como grande cartada política para o presidente Bush. Com inimigos como estes, quem precisa de amigos?

“As mortes de Udai e Qusai são eventos da máxima importância. Elas
vão ajudar a diminuir muito os ataques contra as tropas americanas
no Iraque. Vão também convencer a população atemorizada de que
a tirania de Saddam nunca mais voltará”, disse o comandante das
tropas terrestres americanas no país, general Ricardo Sánchez. “Além disso, trata-se de um tônico para levantar o moral da tropa e mostrar
a todos que estamos fazendo progressos por aqui”, completou. Na
Casa Branca, o dito “tônico levanta moral” também foi bebido com sofreguidão. A esperança era de que os corpos de Udai e Qusai, oferecidos no altar da mídia, fossem suficientes para acalmar os deuses da opinião pública. Com uma única cajadada, acreditava-se, mais do
que estes dois coelhos foram mortos.

Surpresa – A caçada a Udai e Qusai terminou num ponto surpreendente para os americanos. Esperava-se que a dupla estivesse agindo perto de Tikrit (terra de Saddam). Mas a prole do ex-ditador campeava mais ao norte, em Mosul, em pleno território dos curdos, inimigos jurados do antigo regime. Na versão oficial dos fatos, um delator desconhecido
teria indicado o caminho do esconderijo. Às 9 horas locais, um grupo curdo filmou um carro se dirigindo à mansão de Nawaf al-Zaydan, primo distante de Udai e Qusai. O filme teria sido entregue aos americanos,
que identificaram os procurados e correram para a área. Usaram megafones para exigir a rendição dos ocupantes da casa. A resposta
veio na forma de disparos de armas leves. Helicópteros Apache e fortalezas voadoras A-10 Warhogs entraram em ação. Mesmo assim, foram necessárias mais seis horas de tiroteios para que a batalha
contra três homens e um garoto terminasse.

ISTOÉ recebeu informações de fontes da comunidade de inteligência americana de que, na verdade, a ação foi uma emboscada. “Na semana passada, em Tikrit, a casa de um tio de Saddam foi invadida por forças da 1ª Brigada da 4ª Divisão de Infantaria. Lá foi encontrada vasta quantidade de armas e munição, US$ 9 milhões em cédulas e mais US$ 1 milhão em jóias que pertenceram a Sajida, primeira esposa de Saddam e mãe de Udai. O dono da casa é ligado a Nawaf al-Zaydan. Foram eles dois que combinaram conosco a invasão dessa propriedade e sua própria prisão. Tudo para mascarar a delação maior que estava por vir. Nawaf esperava que Udai e Qusai fossem buscar refúgio em sua mansão de Mosul no começo da semana seguinte. A CIA, trabalhando com o pessoal de inteligência dos curdos, montou uma tocaia. Quando o carro dos Hussein apareceu, foi só chamar os comandos de elite. A recompensa
de US$ 30 milhões (US$ 15 milhões por cabeça) ficará com Nawaf, enquanto o tio de Saddam recebeu as jóias e o dinheiro que estavam
em sua casa”, diz a fonte de ISTOÉ. O fato de Nawaf ter sido visto
por várias testemunhas, fumando tranquilamente num veículo militar americano que participava da captura dos Hussein, parece comprovar
a história de traição.

Guerrilha – Mas o governo Bush espera ter abatido mais nesta caçada. Acredita-se em Washington que presa mais suculenta é a guerrilha movida com sucesso pelos paramilitares leais ao regime deposto. Até o último dia 22, os soldados americanos estavam morrendo em média de um por dia. Depois das mortes de Udai e Qusai, mais quatro soldados americanos foram mortos em emboscadas. As escaramuças entre as duas forças se contavam diariamente às dúzias, principalmente dentro de um território conhecido como “Triângulo Sunita”, com vertente na região de Tikrit e base em Bagdá. “Essa guerrilha evoca lembranças do Vietnã. E o povo americano definitivamente não quer isso”, diz o general aposentado Barry McCaffrey, ex-chefe do Comando Sul dos EUA e veterano das guerras do Golfo de 1991 e do Vietnã. McCaffrey é um declarado opositor da política Bush no Pentágono, mas sua voz não é isolada na crítica. Um coro cada vez maior de militares – de pijama ou na ativa – tem soado contra as ações do governo no Iraque. Pedem mais tropas para ajudar aqueles que ganharam a guerra, apenas para mergulhar nos combates do pós-guerra. “O panorama de agora mostra que esta administração não tinha um plano claro para o pós-guerra e esperava ser recebida de braços abertos por uma população agradecida. Não foi isso o que aconteceu. E a reconstrução do país empacou, acirrando perigosamente os ânimos do povo local”, diz McCaffrey.

Déficit – Neste clima pesado, o cálculo apresentado pelo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, em seu depoimento ao Congresso no começo de julho, serviu como gasolina na fogueira de indignações dos americanos. Ele reconheceu que o pós-guerra no Iraque deve custar algo em torno de US$ 4 bilhões por mês. Para um país que terá um déficit de US$ 455 bilhões este ano, a notícia não poderia ser pior. Principalmente considerando que em 2001 Bush prometia superávit para 2003; depois anunciou déficit de US$ 400 bilhões e finalmente chegou aos números atuais, que compreendem o maior déficit orçamentário da história. “E o pior é que, com sua política de reduções de impostos, o governo Bush dizimou as economias dos Estados da União. Vários serviços de programas sociais foram cortados e os contribuintes ainda vão enfrentar aumentos de impostos estaduais e municipais”, diz o economista Norman Dacker, do Instituto Republicano de Pesquisas Econômicas. Dacker, atente-se, é republicano. “A impressão geral é de que o corte de impostos deste governo só favoreceu os super-ricos, deixando o restante dos americanos endividados. Temo que isso irá se refletir nos votos depositados nas urnas em 2004”, diz.

Mas a notícia da morte dos irmãos Hussein, porém, pode afastar das manchetes o caso dos falsos documentos sobre a tentativa de compra de urânio do Niger, pelo regime de Saddam, para reativar seu programa nuclear. Descobriu-se depois que o presidente usou essas informações falsas como justificativa para a invasão iraquiana em seu discurso sobre o Estado da União, em 2002. Mais do que uma prestação de contas do governo ao povo, trata-se também da peça de oratória mais importante de um presidente a cada ano. “O que o presidente fez foi indesculpável. Ele deliberadamente usou de falsificação para convencer o país a ir à guerra. Quantas outras mentiras ele terá passado à nação?”, disse a ISTOÉ o senador democrata nova-iorquino Charles Schummer.

“Com a morte de Udai e Qusai, o caso do urânio do Niger vai perder
a força e estará encerrado até o fim de semana”, previa o analista republicano Thomas Carlisle. Só o tempo dirá se ele tem razão. O
certo é que as dificuldades de Bush parecem não ter fim. Na quinta-
feira 24, uma comissão do Congresso concluiu que os principais órgãos
de informação dos EUA (CIA, FBI e ASN) poderiam ter evitado os atentados de 11 de setembro de 2001, se tivessem compartilhado
as informações que dispunham.

Interesse público
A estranha morte do cientista britânico e assessor do Ministério da Defesa David Kelly – que supostamente se suicidou dez dias atrás – além de deflagrar uma das maiores crises políticas do governo do premiê britânico, Tony Blair, ainda acentuou uma feroz disputa que vem opondo o governo inglês à BBC, principal rede de rádio e televisão pública do Reino Unido. Em meio a uma cobertura da invasão do Iraque que se destacou pela independência das posições oficiais, a BBC afirmou numa reportagem que o governo havia “esquentado” um dossiê sobre armas de destruição em massa iraquianas, citando uma fonte oficial. E essa fonte era justamente David Kelly. Alastair Campbell, chefe de comunicações de Blair, disse que o repórter mentira e exigiu um pedido de desculpas. A morte de Kelly provocou troca de acusações entre a BBC e funcionários do governo e ainda está longe de ser resolvida.

A BBC (British Broadcasting Corporation) é um conglomerado de oito canais de televisão e dez emissoras de rádio. Trata-se de uma emissora pública e não-estatal, residindo aí a razão de sua autonomia. Seu orçamento anual de US$ 4,5 bilhões provém de um imposto que cada casa com televisor paga por mês à emissora. Não há comerciais nem pressão de anunciantes e a BBC não depende do governo, pois seu financiamento não vem do orçamento governamental.

Essa idéia de independência financeira do governo já estava presente desde a primeira transmissão da BBC a partir do estúdio de Guglielmo Marconi, o inventor do rádio, em novembro de 1922. Isso possibilitou
à BBC ter uma cobertura autônoma sob qualquer governo. Até mesmo o lendário Winston Churchill tentou, no final da década de 20, quando era ministro da Fazenda, submeter o controle da BBC ao governo,
sem sucesso. Mais tarde, durante a Segunda Guerra, Churchill percebeu a importância da independência da BBC quando seus famosos discursos foram transmitidos ao vivo. A BBC conseguiu inclusive passar incólume pela fúria privativista da era Thatcher, na década de 80, a despeito da posição crítica adotada pela emissora diante da guerra das Malvinas (1982).

Fernando F. Kadaoka