Obstinado e insaciável, o técnico acumula títulos e vive o dilema entre buscar a perfeição e saber que é impossível alcançá-la

Bernardo Rocha de Rezende, o Bernardinho, técnico da seleção masculina de voleibol, é um ícone do Brasil que dá certo. Com um método que combina pesquisa, uma dedicação rara aos treinamentos e a eterna convicção de que algo precisa ser feito mesmo depois de um título, esse carioca de 43 anos construiu um currículo impressionante. Em 28 competições disputadas com as meninas, chegou ao pódio em 27 e, na outra, terminou em quatro. Com os rapazes, foram dez competições desde o final de 2000, oito medalhas de ouro e duas de prata. A última conquista foi a Liga Mundial, no domingo 13, em Madri, diante da Sérvia e Montenegro, ex-Iugoslávia, atual campeã olímpica. A vitória por 3 a 2 (25/16, 21/25, 19/25, 25/23 e 31/29) foi coroada por um tie-break espetacular, de 27 minutos, que deixou os brasileiros enlouquecidos diante da tevê. “Soube que muitos disseram: ‘Acabem com isso, mesmo que seja para perder’”, comenta o técnico, já com a cabeça no Pan-Americano de Santo Domingo, na República Dominicana, em agosto. “Vamos para tentar o ouro”, avisa. “Por mim, começaria a treinar hoje, logo depois desse desfile. Mas eles (os atletas) precisam descansar. E eu tenho que me segurar”, admitiu o técnico na manhã de terça-feira 15, antes de atrasar por alguns minutos a sua subida no caminhão de bombeiros em que desfilou pelas ruas de São Paulo para, gentilmente, concluir esta entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – Como você aguentou aquele tie-break incrível na beira da quadra?
Bernardinho

Bernardinho – Procurei me controlar para não atrapalhar a oncentração da equipe. Sinceramente, não me lembro de ter jogado
ou visto um set final tão disputado. Num determinado momento do tie-break, uma movimentação estranha de pessoas à beira da quadra passou a me incomodar. Minutos depois, percebi que eram os repórteres fotográficos. Aquela turma imensa ia de um lado para o outro em
busca do melhor ângulo para fotografar o ponto final e a festa. Só que ninguém fechava. Depois do jogo, numa entrevista, cheguei até
a pedir desculpas aos cardíacos.
 

ISTOÉ – Você é mesmo perfeccionista e insaciável?
Bernardinho

No fundo, é um paradoxo: sou um perfeccionista que sabe que a perfeição jamais será atingida. E, se isso fosse possível, também não gostaria de alcançá-la. Seria o fim dos objetivos e eu não conseguiria viver sem eles. Após o desembarque, disse que nem tudo saiu como eu queria e alguns acharam graça. Mas quando falo que não estou totalmente satisfeito, mesmo depois de um título, não é marketing ou estratégia para arrancar ainda mais empenho dos jogadores. Digo porque é verdade. E aponto as falhas. Alguns meninos me perguntaram: “E aí, professor, está bom?” Respondi: “Bom sim, perfeito nunca.”
 

ISTOÉ – Como surgiu o Bernardinho líder?
Bernardinho

A partir da soma de alguns fatores. O primeiro deles é a personalidade. Apesar de ter feito parte do grupo ganhador da medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984 (era reserva do levantador William), admito que, como jogador, tinha um talento limitado. Cresci por causa da determinação. Inspirava-me no Bebeto de Freitas, um levantador excepcional que depois foi meu treinador. No Brasil, o maior talento da minha geração foi o Renan. Lá fora, tive como ídolo o jogador americano de vôlei Katch Kirally, exatamente pela sua capacidade de superação. O segundo pilar é formado pelos fundamentos teóricos que podem ser adaptados ao esporte. Além de ex-atleta, sou economista. Combinei lições de ícones do esporte com teorias organizacionais e casos de empresas bem-sucedidas. Existem características comuns entre grupos e pessoas que fazem sucesso em qualquer atividade. Minha busca é detectar esses fatores e aplicá-los nos grupos que lidero.

ISTOÉ – Quais são os seus gurus?
Bernardinho

Não diria gurus, mas pessoas importantes. O técnico
John Wooden, do departamento de basquete da Universidade da Califórnia, dez vezes campeão universitário americano em 11 anos de carreira, é uma delas. Outra é Vince Lombardi, ex-técnico do Green Bay Packers e o mais carismático líder da história do futebol americano, aquele jogado também com as mãos. São exemplos típicos do que os americanos chamam de técnicos filósofos, aquelas pessoas que, de tão profundas, projetam ensinamentos, conceitos e valores para além do esporte. Eu costumo usar uma frase do Lombardi e muita gente acha que é minha: “A motivação para se preparar é mais importante do que
a motivação para vencer.” Acho isso maravilhoso. Afinal, o difícil é encontrar ânimo para encarar a rotina e a necessidade inadiável de responder à obrigação profissional. No voleibol, a distância entre o céu
e o inferno, como se viu no domingo passado, se resume a dois pontos. Seria justo desconsiderar todo o trabalho feito até a decisão se os
caras tivessem aberto os dois pontos ao final daquela batalha? Em
casa, foram fundamentais meu avô, Octavio de Resende, ex-ministro
do Tribunal Militar e positivista de formação, e meu pai, Condorcet Resende, um grande advogado tributarista. Agora, já que você falou em guru, eu tive um, sim.
 

ISTOÉ – Quem foi?
Bernardinho

 Benedito da Silva, o Bené, meu técnico no Fluminense, o primeiro clube em que joguei. Além de mim, ele lançou, entre outros, Bernard, Badalhoca e Fernandão. Não é pouco. Ele foi o primeiro a ver em mim alguma capacidade de liderança, a me dar o número um na camisa e a função de capitão. Era um sábio, um legítimo educador. Vou contar uma história, até para homenageá-lo. Meu irmão mais velho, Rodrigo, jogava comigo no Fluminense. Era muito mais talentoso do que eu, mas não queria nada. Bené vivia dando bronca no Rodrigo, mas nunca o expulsava do treino. Comigo, era diferente. Era só eu aprontar alguma e ele me dispensava mais cedo. Lá pela quarta ou quinta expulsão, perguntei: “Tudo bem, professor, eu errei. Mas por que o senhor sempre me manda embora e nunca faz isso com o Rodrigo, que não se dedica aos treinamentos nem obedece o senhor como eu?” Ele respondeu: “Exatamente por isso. O Rodrigo tem talento, mas não quer nada. Se eu o expulsar, ele não voltará mais e eu sinto que o esporte ainda pode fazer algum bem para ele. Você, por outro lado, é responsável e volta ainda mais dedicado após cada punição.”
 

ISTOÉ – E os ?professores? de fora do esporte?
Bernardinho

Li muita coisa sobre Winston Churchill, o primeiro-ministro que dirigiu a Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra. Aprendi muito ao conhecer a maneira corajosa com que ele liderou sua nação num momento tão delicado. Tenho muita coisa sobre o pesquisador
Peter Druker, talvez o principal guru da administração moderna. As teorias sobre planejamento estratégico de Jack Welch, ex-presidente
da General Electric, também foram úteis. Acabei de ler, em inglês, um livro cujo título é algo como Os cinco desafios de um time, também
sobre liderança e motivação.

ISTOÉ – Faça um resumo de sua participação à frente das seleções brasileiras.
Bernardinho

Na feminina, foram 28 torneios, se não me engano, 27 pódios e um quarto lugar. Assumi o masculino no segundo semestre de 2000. Desde então, foram dez torneios, dez decisões, e oito títulos, entre eles o do campeonato mundial, disputado no ano passado em Buenos Aires, e a Liga Mundial deste ano.
 

ISTOÉ – Num certo momento da final, Nalbert foi substituído e saiu pulando e gritando. Além das substituições, você grita, faz cara feia, arregala os olhos, lidera o time a cada jogada. Não tem medo de levar uns tapas de algum jogador?
Bernardinho

A reação do Nalbert é compreensível e elogiável. O cara está lá, com vontade de vencer. Eu teria medo de levar uma porrada se eles não estivessem convencidos de que o que eu faço é para o sucesso do grupo e a evolução de cada jogador. Agora, reagir com respeito é a coisa mais normal do mundo. Fui atleta, sei como é. Jamais chamaria a atenção de um atleta só para afirmar minha liderança diante das câmeras. Nosso grupo não precisa disso, mas sim da vontade de vencer do Nalbert. Tenho andado um pouco mais calmo. Meses atrás, estava conversando com o meu amigo Radamés Lattari (antecessor de Bernardinho no masculino) sobre a possibilidade de me controlar mais. O Rada disse: “Nem pensar, você rende é assim.”
 

ISTOÉ – Do que os jogadores mais reclamam?
Bernardinho

Da carga de treinamento, em primeiro lugar, e do longo tempo longe dos familiares. Na reta final das competições, não adianta reclamar. São pelo menos seis horas diárias entre treinamento físico, tático e coletivo. Se somarmos as conversas, os vídeos e as discussões, lá se vão nove ou dez horas de trabalho por dia. Nesta semana de descanso, antes do embarque para o Pan, cada um deles levou um dever de casa de pelo menos uma hora de exercício físico por dia. Como sempre, vamos para vencer. O vôlei do Brasil não leva um ouro no Pan há 20 anos. Os atletas começarão o trabalho daqui a uma semana. Por mim, treinaria hoje mesmo, depois do desfile. Mas eles precisam descansar. E eu tenho que me segurar.

ISTOÉ – Você teve problema com algum atleta?
Bernardinho

Nada sério. Com a Leila, houve um distanciamento no início, mas, com o tempo, um profundo respeito nos uniu. Hoje, quando nos encontramos, trocamos abraços de amigo. A Filó, hoje uma amiga, me deu muito trabalho porque era desorganizada e
arrumou algumas confusões.
 

ISTOÉ – É obrigatório ser amigo de todos?
Bernardinho

De forma alguma. Preciso respeitar os atletas, ser respeitado por eles e fazê-los acreditar que estou trabalhando para o bem. E isso vale para os atletas. Se rolar amizade, melhor, mas não é necessário. A Márcia Fu era tida por outros como uma atleta problemática, mas comigo sempre foi extremamente profissional. Ana Paula é uma jogadora fora de série, craque, absolutamente extraclasse. Mas infelizmente resistia muito às minhas cobranças e não conseguimos nos entender como eu queria. Tive parcela de culpa, mesmo porque também não sou lá muito fácil. Foi uma pena. Faço torcida por ela. Com os meninos, não houve nada.
 

ISTOÉ – É verdade que você colocou a turma para treinar num estacionamento antes da Liga?
Bernardinho

Sim, na Holanda. Precisava organizar algumas jogadas e o programa estava apertado. Encontrei um bom espaço num estacionamento e não pensei duas vezes. Era engraçado ver aqueles grandões dando pancadas na bola em meio aos carros. O bom é que
o grupo vai comigo, não refuga nessas situações. Outro episódio curioso ocorreu nesta Liga Mundial. Estávamos num aeroporto italiano
e tínhamos cinco horas de espera antes da conexão. Disse: “Vamos malhar”. Aluguei duas vans e levei todo mundo para uma academia. Giovane e eu dirigimos.

ISTOÉ – Você tem entre 12 e 14 titulares e um monte de ?problemas? para resolver…
Bernardinho

Na verdade, um monte de soluções. Quando acabou o Mundial, quem eu abracei primeiro? O Giovane. Ele se recuperou. Hoje, não é admirado apenas pelas atuações ou pela estampa física de símbolo sexual. Ele dirige van, abana os amigos enquanto está no banco, faz comentários. É um homem maduro, que entendeu sua importância, jogando 15 minutos ou duas horas. O Gustavo é um dos melhores meios-de-rede do mundo. De repente, se machuca e Rodrigão faz isso tudo. O Maurício é, tecnicamente, o melhor levantador do mundo de todos os tempos. O toque dele é uma obra de arte – e olha que a opinião é de um ex-levantador. Mas, na Liga, jogou menos que o Ricardinho. Nenhum brasileiro ganhou prêmio de melhor jogador, mas o time foi campeão. Ponto para o grupo. No Mundial, Maurício foi eleito o melhor levantador e o André Nascimento, o melhor atacante. Mas, na semifinal e na final, os dois deram suas vagas para Ricardinho e Ânderson. Não há solistas, mas brilhantes componentes de orquestra.

ISTOÉ – Domingo, quem recebeu o primeiro abraço foi Giba, do Ferrara, da Itália, suspenso em março depois que um exame antidoping detectou uso de maconha. Você conversou com ele?
Bernardinho

Muito. Nunca discuti o assunto sob o ponto de vista moral. Disse que ele é um talento, mas quebrou uma regra do esporte e a atitude poderia jogar todo o peso de um sistema contra os seus objetivos. Os que experimentaram ou leram sobre maconha sabem que Giba jamais consumiria a substância em busca de performance. Os efeitos levam a um comportamento diametralmente oposto ao da explosão de energia apresentada por ele no tie-break. Ele fumou como um jovem que comete erros. Na verdade, quis abraçá-lo pela postura bonita que ele teve enquanto Giovane esteve jogando em seu lugar. Chamado, entrou com a vibração habitual.

ISTOÉ – Do que você aplica no vôlei, o que acha ser possível usar em outras atividades?
Bernardinho

Tudo. O que fazemos é submeter vaidades e desejos pessoais ao objetivo do grupo e, com isso, atingir resultados. Em qual atividade isso pode ser ruim?

ISTOÉ – Segunda-feira, um jornalista disse que, no vôlei, você é o ponto de encontro da racionalidade do Parreira com a liderança do Felipão. Você seria técnico da seleção de futebol?
Bernardinho

Não seria capaz de treinar o futebol. Sei liderar grupos, mas estou longe de conhecer o esporte como os mestres Parreira e Felipão.
 

ISTOÉ – Na volta do Mundial, você não escondeu a tristeza ao perceber que sua filha Julia, então com dez meses, demorou um pouco a reconhecê-lo. Agora, ela está com um ano e sete meses. Como foi o novo encontro?
Bernardinho

Maravilhoso. Ela veio correndo, gritando papai. Ufa! Foi um misto de alívio e emoção.

ISTOÉ – Como você se comporta em família?
Bernardinho

(Rindo) Lá em casa, quem define estratégias e metas é a levantadora (Fernanda Venturini, ex-jogadora da seleção feminina e mulher do técnico).