O governo conseguiu costurar em 27 dias um grande acordo político em torno da reforma da Previdência. Garantiu os votos para aprová-la, mas o processo deixou sequelas no coração do poder. Nove entre dez analistas concordam que as idas e vindas na reforma podem fragilizar o Planalto nas futuras negociações com o Congresso e os governadores. “O processo foi mal conduzido”, constata o deputado Roberto Freire (PPS-PE), da base de apoio do governo referindo-se aos improvisos e divisões internas no primeiro grande teste do governo no Parlamento. “O encaminhamento vai prejudicar as próximas reformas”, prevê um graduado líder petista. “Ao recuar, o governo mostra que não tem convicção sobre suas teses”, avalia o oposicionista Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), lembrando que salários integrais e isonomia de reajuste entre ativos e inativos – incluída na última hora – são a antítese do que o governo vinha apregoando. “Foi um bom acordo”, diz o ministro da Previdência, Ricardo Berzoini. “Do ponto de vista fiscal, não tem reflexo, é praticamente neutro”, assegurou o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. “As mudanças não comprometem, continuamos apoiando”, endossou o governador paulista, Geraldo Alckmin. Os desencontros iniciais em relação à proposta empurrada pelo lobby da toga, com o aval dos parlamentares, acabaram explicitando uma brigalhada que cresce na constelação petista.

O Palácio do Planalto está debitando os tropeços da negociação na conta do presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha (PT-SP). “Ele foi ingênuo, atabalhoado e precipitado”, critica uma reluzente estrela petista. Os governistas não aprovaram os debates regionais sobre a reforma regidos por João Paulo e acham que ele passa por uma crise de afirmação. “Ele não é líder de governo, mas presidente de uma instituição. Não é papel dele. Veio com um pacote pronto e não avisou o governo”, censura outro cacique petista. “O ministro Antônio Palocci ficou mais perdido do que cachorro que cai da mudança”, reclamou o mesmo petista. A dissonância tornou-se clara no início da tarde de quarta-feira 16. No mesmo instante em que João Paulo já dava como certas a integralidade e a paridade para os atuais servidores e acelerava o calendário de votação, Palocci criticava na Espanha a sofreguidão
das negociações: “Se vamos nha agido sem o sinal verde do Planalto.
“Se ele estava negociando sozinho, porque o Zé (José Dirceu, ministro
da Casa Civil) participava das reuniões?”, questiona o ex-líder do
PT Walter Pinheiro (BA). A maratona de conversas que resultou no privilégio de os atuais servidores públicos vestirem o pijama com salário integral contou sempre com a participação da dupla Dirceu/Berzoini.
Nas primeiras negociações, no final de junho, Dirceu dizia não ver problemas e Berzoini avalizava: “Dá pra fazer, é auto-sustentável”, relembra um dos negociadores. Na reunião que bateu o martelo na proposta final, o presidente do STF, Maurício Correa chegou a exibir
um papel com anotações e contas feitas a punho por Berzoini sobre a integralidade e a paridade. O deputado Inácio Arruda (PCdoB-CE) pediu, em vão, para tirar uma fotocópia do bilhete. “Trabalhei absolutamente integrado com o governo, fiz a minha parte”, defende-se João Paulo.
A um amigo, o presidente da Câmara foi menos protocolar e desabafou: “O Berzoini chegou a sinalizar a paridade para os futuros servidores.
Ele também errou ao não procurar os governadores para levar a
proposta. Era função dele.”

O curto-circuito com os governadores não ameaçou a negociação. Embora neguem, eles vão pressionar o governo na próxima reforma – a tributária. A entrega do relatório foi adiada em uma semana para negociar a divisão de receitas federais com os Estados. A suscetibilidade às pressões, demonstrada agora, pode clarear o sonho dos Estados de beliscar um naco da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), com uma receita prevista em R$ 8 bilhões em 2003. O caminho da reforma da Previdência, que deu os primeiros passos na quinta-feira 17, sob protestos dos servidores, ainda é longo. No Congresso, ela deve ser aprovada com maioria folgada, mas um dos temas mais emblemáticos – taxação de inativos – pode enfrentar resistências no próprio STF e por causa disso cresce no Congresso a corrente que pretende deixar que Estados e municípios assumam o desgaste político de tributar seus aposentados. Se na forma a negociação desagradou a setores do governo, o resultado dela também não foi uma unanimidade. Os juízes classificaram de “retrocesso” o subteto para os Estados e a CUT também protestou ao ver que nenhuma de suas propostas foi acolhida e prometeu engrossar o coro por greves. O jogo está apenas começando.

AS NOVAS REGRAS

Previdência Pública – A reforma eliminou o teto dos benefícios para os servidores e manteve privilégios. Enquanto na previdência privada a média de benefício é de R$ 370, no serviço público a média é bem maior: R$ 7,9 mil no Legislativo, R$ 8 mil no Judiciário, R$ 12 mil no Ministério Público e R$ 2,2 mil no Executivo.

Integralidade– Os atuais servidores terão aposentadoria igual ao último salário, cumprindo quatro condições. Homens: 60 anos de idade, 35 anos de contribuição; mulheres: 55 anos de idade, 30 de contribuição. Além disso, ambos devem ter 20 anos de serviço público e dez de carreira.

Teto – Os futuros servidores públicos terão um teto de R$ 2.400. Vitória do governo.

Inativos– Será cobrada uma contribuição de 11% dos inativos e isenção para quem ganha até R$ 1.058.

Pensões– Será integral para quem recebe salário de até R$ 1.058. A parcela acima desse valor terá um desconto médio de 50%. O teto diminui. Pela primeira proposta era de R$ 2.400

Paridade– Mantida para os atuais servidores. A correção das aposentadorias dos futuros funcionários ficou pendente de aprovação de uma lei complementar.

Subteto– Os juízes nos Estados receberão no máximo 75% dos salários do Supremo Tribunal Federal, que é R$ 17.400.

Aposentadoria Proporcional– Quem antecipar a aposentadoria não terá direito ao salário integral. A aposentadoria será calculada pela média dos salários a partir de agosto de 1994 com um redutor de 5% por ano antecipado. Para antecipar a aposentadoria, o servidor vai precisar de dez anos de carreira no serviço público e cinco anos no cargo no qual se aposentar.