O álcool e as outras drogas. Agora é assim que os especialistas se referem à dependência química, não deixando dúvida de que aquela cervejinha e os tragos alcoólicos podem ser tão danosos quanto a cocaína. Na verdade, podem ser até mais prejudiciais do que os produtos ilícitos, já que são vendidos livremente e em larga escala. Essa nova forma de encarar a bebida não é exagerada. Hoje, 11% dos brasileiros sofrem de alcoolismo. O problema é bem maior do que a dependência de maconha (1% da população). Os dados foram revelados este ano por um estudo do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas realizado em 107 cidades com 8.589 pessoas entre 12 e 65 anos. Segundo o trabalho, coordenado pelo pesquisador José Galduróz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 69% da população já usou álcool. “Ele é de longe a droga mais problemática atualmente”, diz Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de Apoio a Dependentes, também da Unifesp.

Tudo pode começar de uma forma divertida, com os amigos no bar, mas
o exagero e a propensão genética podem fazer do costume uma doença crônica, como a diabete. E a verdade é que até recentemente a população e o governo não davam a devida atenção ao combate do alcoolismo. Mas isso está mudando. “Antes não havia tanta preocupação em criar medidas no setor público para tratar a dependência. A bebida sempre foi um hábito socialmente aceito e há dificuldade em entender
o alcoolismo como uma doença que precisa de cuidados”, afirma o psiquiatra Pedro Delgado, coordenador do programa de saúde mental
do Ministério da Saúde.

Falta essa percepção até mesmo entre os médicos. “Muitos não dão atenção ao dependente que chega ao hospital. Acham que é falta de vergonha”, conta Delgado. O governo estuda medidas para modificar esse cenário, como intensificar o treinamento dos profissionais de saúde. Além disso, o ministério está ampliando a oferta de serviços especializados. Até o momento, foram criados 50 Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) para álcool e drogas. A previsão é chegar a 350. E, fechando ainda mais o cerco, foi criado um grupo para elaborar um projeto de lei que viabilize o combate ao problema. Uma das propostas é alterar as regras da publicidade de bebidas.

S Nessa luta, um fato que tem chamado cada vez mais atenção é a dependência feminina. Não há estatísticas, mas nota-se que as mulheres têm procurado mais ajuda. No grupo Alcoólicos Anônimos (AA), as salas estão cheias de adeptas. “Antes, a proporção era de quatro homens para uma mulher. Hoje é de quatro homens para duas mulheres”, estima o psiquiatra José Antônio Silva, que presta trabalho voluntário à entidade. Entre eles e elas, quando se trata de álcool, tudo é diferente. “A mulher metaboliza o álcool mais rápido do que o homem. Precisa beber menos do que ele para ter os mesmos prejuízos”, afirma a psicóloga Sílvia Brasiliano, coordenadora do Programa de Atenção a Mulheres Dependentes Químicas do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC).

A maioria dos serviços e hospitais tem investido em grupos específicos para as dependentes. A psicóloga Luciana Pinheiro, do Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, ressalta que desde 2001, quando foi criada uma unidade feminina, elas estão participando mais do tratamento. Esse grupo recebeu a visita da atriz Vera Holtz, 50 anos, que interpreta a professora Santana na novela Mulheres apaixonadas. A personagem sofre de alcoolismo. “Procurei a unidade para saber tecnicamente como se dá uma crise de abstinência”, diz. A atriz ficou muito emocionada com os depoimentos. “Estou gravando a recaída da Santana. É muito triste”, revela Vera, que só toma vinho. E de vez em quando.

O desempenho da atriz tem sido aprovado por quem convive ou conviveu com o alcoolismo, como a paulistana Maria Aparecida*, 64 anos. Ela também foi professora. “Mas nessa época eu não bebia”, conta. Um dia, bebericou algo num fim de semana e acabou incorporando o costume na folga do trabalho. Só que o problema se agravou, ainda mais quando a professora ficou sem emprego e terminou um noivado. Tornou-se diário. Em 1986, estava tão doente que sofria alucinações. Via nuvens de
cupins em todos os lugares. “Lavava minha cama com desodorante
para limpá-la dos bichos”, detalha. Em dezembro daquele ano, Aparecida entrou em coma alcoólico. Depois, no tratamento, conheceu os
S Alcoólicos Anônimos. Desde então frequenta o grupo e não bebe há 16 anos. “Ao me deitar, rezo, agradeço o dia e peço mais 24 horas sem beber. E assim faço sempre”, completa.

Se alguém pensa que proibir a substância é a melhor saída, está enganado. O problema não é o álcool em si, mas a forma como ele é usado. Para os especialistas, deve-se ensinar as pessoas a consumi-lo corretamente. Ou seja, a questão é beber com responsabilidade. Uma das lições para isso é conhecida de muita gente. “Alimentar-se bem antes de beber já é um bom começo”, recomenda Roberto Tykanori, coordenador do programa de álcool e drogas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. É preciso ficar atento aos próprios hábitos para saber quando passou do limite. Se a pessoa planeja os dias em que vai beber e quanto irá consumir e é fiel ao propósito, provavelmente não está dependente. O alcoólico está longe de ter esse controle. “A maioria dos nossos pacientes tomou a primeira dose aos 15 anos. Aos 20, se julgava diferente dos amigos porque bebia mais. Até entender que precisa de ajuda, leva, em média, mais 15 anos”, acrescenta André Malbergier, coordenador do Grupo de Estudos
S de Álcool e Drogas, do HC.

Esse cálculo se confirma na história do publicitário Hugo*, 53 anos, de São Paulo. Ele só percebeu que tinha problemas quando perdeu emprego, casa, família e respeito. Quando jovem, Hugo fez três universidades e, nesse período, começou a beber. No início, ele achava que tomar algo o fazia atingir um estado especial. Acreditava produzir melhor dessa forma. Até que atingir o tal estado se tornou difícil. Com o tempo, Hugo desenvolveu dependência. “Acordava às 4h30 para abrir a padaria”, afirma. E arranjava maneiras de negar o vício. “Minha última desculpa era que eu não me apegava a bens materiais. Era um poeta incompreendido. Vivia nos bares declamando poesias”, recorda-se. Numa ocasião, porém, o dono de um bar lhe deu um ultimato. Se quisesse beber, bebesse.
Mas nada de poesia. Hugo caiu em si. “Eu não era um poeta. Era
infeliz.” Naquele momento, ele decidiu parar. Estava com 34 anos.
E desde então não bebe mais.

Limite – Para aqueles que, durante a ressaca, ficam repetindo várias vezes por semana “eu não sou alcoólico, apenas gosto de beber”, vale o alerta. É unanimidade entre os médicos que a negação faz parte da doença. Muita gente se recusa a perceber que está passando da conta. Qual o limite da bebedeira? A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece que pessoas saudáveis podem consumir, no máximo, 30 gramas diárias de álcool. Isso corresponde a aproximadamente uma garrafa de cerveja (600 ml), um copo e meio de uísque ou duas taças de vinho. Quem não esbanja saúde deve procurar o médico para saber o quanto pode beber. “Os hipertensos, por exemplo, devem consumir metade do que diz a OMS”, avisa o cardiologista Abrão Cury Júnior, do Hospital do Coração, em São Paulo. É claro que o álcool não é danoso apenas aos dependentes da substância. O exagero pode ter consequências sérias. Os problemas variam do infarto à impotência (confira acima). “Quem toma mais de 150 gramas de álcool por semana, o equivalente a cinco garrafas de cerveja, durante dez anos tem risco de desenvolver cirrose”, informa o médico Fauze Maluf Filho, do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo.

Os não-dependentes têm condições de controlar a vontade de encher a cara. Basta querer. Para os alcoólicos, a tarefa não é tão simples. Há uma predisposição genética à doença. Apesar disso, ainda não se comprovou sua influência exata na manifestação da enfermidade. “Em algumas pessoas o álcool tem um efeito mais intenso no cérebro. Uma das suspeitas é que elas tenham mais receptores para a substância”, afirma Malbergier. O vício também é influenciado pelo ambiente e por exemplos em casa.

O tratamento da dependência é complexo, exige paciência e força de vontade. Ele pode envolver psicoterapia e medicamentos (entre eles, antidepressivo). Em certos casos, são oferecidos meios de fortalecer a auto-estima e resgatar a cidadania. No grupo feminino do Instituto Pinel, as dependentes desenvolvem diversas tarefas, como a produção de peças de teatro. Nos CAPs, há oficinas de artesanato. É fundamental também cuidar das doenças associadas ao alcoolismo, caso da ansiedade, fobia social e síndrome do pânico. Algumas vezes, elas surgem antes do alcoolismo e levam ao vício. “Em 70% dos casos, a depressão é anterior ao alcoolismo”, conta a psicóloga Sílvia Brasiliano, coordenadora do programa do HC voltado a mulheres dependentes. Modificar o contexto da dependência é igualmente importante. “É preciso criar condições para que a pessoa consiga dizer não ao álcool. Isso implica mudar a rotina e os velhos hábitos”, afirma a psicóloga Sueli Gonçalves, da Clínica Recanto Maria Tereza, uma das referências de tratamento em São Paulo. Lá, os pacientes fazem terapia em grupo ou individual.

Empresa – Esforços para conter o alcoolismo não necessitam partir exclusivamente dos serviços de saúde. Campanhas de prevenção nas escolas podem ajudar a afastar o problema dos jovens. Afinal, os especialistas acreditam que o consumo da bebida esteja começando
cada vez mais cedo. Por isso, o alerta deveria ser dado ainda na infância. As empresas também podem dar sua contribuição. Em São Paulo, a Companhia de Engenharia de Tráfico (CET) é um exemplo. Em vez de demitir ou fazer vista grossa ao abuso de bebida por parte de seus empregados, a companhia montou em 1997 um programa de ajuda aos funcionários dependentes de álcool. “Eles não podem ser penalizados, e sim precisam de tratamento”, declara a psicóloga Elisabeth Sousa, uma das coordenadoras do projeto. Uma das estratégias foi criar um grupo
de auto-ajuda que reúne quinzenalmente os dependentes. A técnica
de trânsito Virgínia Aguiar, 58 anos, participa dele. Foi assim que ela superou o desafio de dizer não ao álcool. Desde os 15 anos, Virgínia abusava da bebida. Na CET, chegou a faltar muitas vezes no trabalho.
Há quatro anos, ela deu um basta ao alcoolismo. “Hoje, eu aproveito a vida. Antes, vegetava”, encerra.

 

Publicidade em xeque

O Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja não concorda com a restrição de horário para as campanhas publicitárias, uma das propostas a serem estudadas pelo governo na luta contra o alcoolismo. A idéia é permitir comerciais de bebidas alcoólicas apenas à noite (o que já acontece com os destilados). Hoje, a propaganda de cerveja e vinho tem direito à veiculação diurna. “Por ter baixo teor alcoólico, a cerveja não pode ser tratada como os destilados”, diz Marcos Mesquita, superintendente da entidade. Além disso, segundo ele, a forma como as grades da tevê estão montadas, especialmente as dos canais pagos, permite a exibição de programas infantis à noite e de adultos durante o dia. “Proibir horários, então, não faz sentido.” De acordo com Mesquita, a preocupação deve ser voltada ao conteúdo dos comerciais. E para isso, em suas palavras, funciona bem o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação (Conar), que fiscaliza a publicidade. “Já está lá que não se pode vincular o produto a nenhum tipo de êxito ligado ao desempenho pessoal, social e sexual. Também a menção a crianças é vetada”, explica.

Na bebida
Os apreciadores de vinho não precisam achar que o prazer acabou.
Se a saúde está em dia é permitido beber com moderação. Mais: pesquisas indicam que consumir vinho tinto, por exemplo, traz benefícios ao coração. “Um estudo espanhol mostrou que a bebida inibe a ação de uma substância que leva ao acúmulo de placas de gordura nas artérias”, diz o cardiologista Antônio Carlos Chagas,
de São Paulo. É claro que o vinho não é forma de tratar doença cardíaca. “O ideal é tomar dois cálices por dia”, recomenda. Há também efeito positivo sobre o coração no caso da cerveja. Mas
os estudos não são conclusivos. De qualquer modo, recomenda-se intercalar as doses de bebida com uma de água. O médico Abrão
José Cury Júnior tem uma sugestão curiosa: colocar gelo no copo
de cerveja. “Isso ajuda a hidratar.”

* As identidades foram preservadas
Produção: Mariana Abreu Sodré; Modelo: Elaine Basilio;
Agradecimentos: Le Lis Blanc, Capodarte; Maquiagem e Cabelo: JROSantos