A Organização Mundial da Saúde entrega ao sanitarista Paulo Teixeira a tarefa de elaborar a política de controle mundial da Aids

O médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira é referência mundial em tratamento e prevenção da Aids. Não se trata de mais uma história de mania de grandeza de brasileiro. Solteiro, 54 anos, Teixeira usa seu talento de negociador para brigar com o mundo inteiro pelo acesso aos medicamentos contra o HIV, o vírus da Aids. Contabiliza vitórias inéditas, como as quedas de braço com laboratórios internacionais para reduzir os preços dos remédios. Seu desempenho lhe rendeu convite da Organização Mundial da Saúde (OMS) para elaborar o Plano de Políticas de Controle à Aids, por indicação do Ministério da Saúde. O bem-sucedido Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/Aids, coordenado pelo sanitarista, está em via de evoluir no governo Lula: os Ministérios da Saúde e da Educação negociam implantar, no segundo semestre, a oferta de preservativos para adolescentes acima de 14 anos, inicialmente no horário noturno de algumas escolas públicas.

Outra novidade é a inclusão, na mesma época, do tenofovir ao coquetel de medicamentos anti-retrovirais, fornecido gratuitamente aos soropositivos. O remédio é indicado a pacientes com resistência a algumas das drogas usadas no tratamento. A medida foi possível após mais uma disputa, dessa vez com o laboratório canadense Gilead, na qual o País conseguiu economizar 33,35% sobre o preço inicial do remédio. Em maio, o Programa DST/Aids ganhou US$ 1 milhão pelo Prêmio Gates Saúde Global 2003, concedido pela Fundação Bill e Melinda Gates. Foi ainda graças à pressão dos técnicos brasileiros que, em assembléia realizada em maio, a OMS passou a considerar os medicamentos essenciais – a exemplo dos que combatem o HIV, a malária, a hanseníase e a tuberculose – como uma questão de saúde pública e não de comércio internacional. “Só essa decisão já foi uma grande mudança”, festeja.

Modesto, Teixeira diz que qualquer pessoa de sua equipe poderia ter
sido indicada para o cargo na OMS. Mas poucos entendem da epidemia como ele. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo e especializado em dermatologia e saúde pública, comandou o primeiro Programa Brasileiro de Combate à Aids, em 1983. Seis anos depois, se especializou em epidemiologia e Aids na Universidade da Califórnia. Em 2000, assumiu a coordenação do DST/Aids, do Ministério da Saúde. Em 20 anos de atuação no programa, comemora a redução para a metade
do 1,2 milhão de casos que o Banco Mundial previa para o Brasil. “Estimamos que existam 600 mil portadores do HIV no País, ou 0,6%
da população”, avalia Teixeira, que hoje vive na ponte aérea entre Washington e Genebra, na Suíça.
 

ISTOÉ – O Programa Brasileiro de Aids foi a menina dos olhos do Ministério da Saúde no governo FHC. E na gestão Lula, houve algum avanço ou retrocesso?
Paulo Roberto Teixeira

O programa brasileiro, nesses últimos 20 anos, desde que se iniciou no Estado de São Paulo, em 1983, vem se desenvolvendo à custa de muita mobilização social e se aperfeiçoando. Nos últimos anos obteve vitórias importantes. O novo governo tem um compromisso não só com a manutenção, mas com o aperfeiçoamento do programa. Existem medidas que já se mostram muito mais viáveis agora, como a disponibilização de preservativos em escolas para alunos com mais de 14 anos.
 

ISTOÉ – Há outros países que adotam medidas como essa? Houve pesquisas prévias?
Paulo Roberto Teixeira

Isso já existe em outros países, como os Estados Unidos.
Aqui, foram feitas duas pesquisas em escolas públicas e particulares, uma pela coordenação da DST/Aids, por meio do Disque-Saúde e Pergunte Aids, e outra pela Unesco. Em ambas houve grande aceitação dos pais e professores. As escolas privadas também poderão ser inseridas. Neste mês, os Ministérios da Saúde e da Educação farão um seminário para definir os futuros critérios. É claro que nunca será
um projeto de unanimidade. A Igreja tem o direito de participar da discussão, mas não cabe a ela decidir se a proteção a esse risco deve
ou não ser oferecida. Acho que o Brasil está maduro para uma medida dessas. Seria uma hipocrisia não disponibilizar os preservativos. Todos sabemos que nossos jovens estão começando a vida sexual cada vez mais cedo. Também seria uma forma de evitar a gravidez, tão comum no início das atividades sexuais.

ISTOÉ – Há negociações do governo para quebrar patentes e economizar na compra dos remédios distribuídos aos portadores de Aids?
Paulo Roberto Teixeira

O Brasil não precisou quebrar nenhuma patente porque tem negociado com as companhias satisfatoriamente, embora a política possa ser adotada, se necessário. Foi imensa a economia com a produção de drogas contra a Aids aqui: US$ 110 milhões por ano. A partir do segundo semestre, teremos um novo remédio no tratamento de Aids, o tenofovir, já oferecido a 300 pessoas no País. São portadores de Aids que desenvolveram resistência ao coquetel e entraram com ações na Justiça para obter o remédio, ainda não disponível no Brasil. No início de junho conseguimos uma redução de 33,35% com o laboratório canadense Gilead, representado aqui pela empresa Inited/Medical. Estimamos que será usado, até o fim do ano, por 1,6 mil pessoas.
 

ISTOÉ – O Programa Brasileiro de Aids acaba de ganhar o Prêmio Gates de Saúde Global 2003, de US$ 1 milhão. O que representa esse prêmio e como o dinheiro será empregado?
Paulo Roberto Teixeira

É um reconhecimento de uma instância internacional muito importante na área de saúde. Ele fortalece a política nacional, sobretudo no que se refere a ações integradas e prevenção, tratamento e proteção dos direitos humanos. A maior parte do dinheiro será doada a organizações não-governamentais que trabalham com casas de apoio e de passagem, instituições que acolhem soropositivos ou doentes de Aids que não dispõem de moradia, família e emprego. Muitos são órfãos. Outros US$ 50 mil foram doados pelo Brasil ao Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, uma doação simbólica para registrar o compromisso do País com a luta internacional contra a epidemia.
 

ISTOÉ – Por que o presidente da OMS, Jong Wook Lee, o indicou para elaborar o Plano de Políticas de Controle à Aids na OMS?
Paulo Roberto Teixeira

O novo diretor da OMS solicitou o apoio do Brasil, do Ministério da Saúde, e eu fui designado por ser o diretor do programa nacional. Temos uma grande competência no Brasil e outras pessoas poderiam cumprir esse papel. A expectativa do novo diretor é de que a experiência brasileira seja aproveitada para a sua administração, que se inicia em 21 de julho. Ele pretende dar prioridade máxima ao acesso ao tratamento anti-retroviral. Não resta dúvida de que, entre os países em desenvolvimento, o Brasil tem a maior e mais consistente experiência de tratamento. Quero usar essa experiência em larga escala para iniciar projetos que possam levar à meta de três milhões de pessoas em tratamento até 2005. Hoje são apenas 400 mil, sendo 140 mil no Brasil.
 

ISTOÉ – Em maio, a OMS aprovou por unanimidade a proposta brasileira de considerar medicamentos como os anti-retrovirais uma questão de saúde pública, e não de comércio internacional. A decisão já provocou mudanças?
Paulo Roberto Teixeira

A decisão em si foi uma grande mudança. Até então, a OMS atuava mais tecnicamente em relação aos medicamentos, sem se envolver com patentes, preços, comercialização e acordos internacionais. Essa resolução da assembléia da OMS pressupõe que a organização atue, daqui por diante, de forma firme, clara e efetiva em todas as instâncias, principalmente junto à Organização Mundial do Comércio, para facilitar o acesso dos países pobres aos medicamentos.

ISTOÉ – No início de maio, o sr. denunciou um lobby internacional para desqualificar o programa brasileiro. Em junho, defendeu a qualidade do programa junto ao Banco Mundial. A denúncia surtiu efeito?
Paulo Roberto Teixeira

Não há a menor dúvida que sim. Não só a denúncia, mas a atuação firme de diversas instâncias nacionais comprova que o programa brasileiro tem resultados indiscutíveis sob todos os critérios internacionais. Mostrei ao Banco Mundial que a taxa de resistência brasileira aos medicamentos é a menor do mundo: 6,6%. Na América do Norte, é de 15%; na Espanha, 23%; na Inglaterra, 14%; na Alemanha, 13%; e na França, 10%. A taxa de resistência do Brasil se deve à qualidade técnica do tratamento e aos remédios. E também ao alto nível de adesão da população à terapia.

ISTOÉ – Qual é o perfil da epidemia no Brasil? Onde o problema é mais grave?
Paulo Roberto Teixeira

A epidemia aqui se estabilizou. O maior pico registrou-se em 1998: 25 mil casos de Aids. Os últimos números são de 2001, com 21 mil casos. Ela se caracteriza hoje, principalmente, pela transmissão heterossexual, atingindo a população em geral. Podemos apontar quatro tendências atuais: tem aparecido mais em mulheres, entre os mais jovens, no interior do País e atinge as populações mais pobres. Os Estados do Sul têm os índices mais altos do País. Esta tendência está vinculada ao uso de drogas injetáveis, ainda muito intenso na região.

ISTOÉ – Como está a epidemia entre os homossexuais?
Paulo Roberto Teixeira

O quadro mudou a partir de intervenções muito precoces e principalmente pela mobilização de pessoas desse segmento. De 1980 a 1990, os homossexuais infectados em relações sexuais correspondiam a 31% da população. Hoje são apenas 15,2%. Os heterossexuais passaram de 16,4% para 40,4%. Os homossexuais, no entanto, ainda têm taxas bem altas de infecção, embora muito menores do que há dez anos. Houve uma atuação muito intensa nas medidas de prevenção, que ao longo do tempo foram se mostrando bastante eficientes. O combate deve ser permanente e, mais uma vez, eu diria que esse controle depende da ação comunitária, com apoio do governo no trabalho corpo a corpo.

ISTOÉ – Existem movimentos polêmicos, como o do bareback, que estimulam as relações homossexuais sem preservativo pelo prazer do risco de contaminação. Como o sr. vê essas práticas?
Paulo Roberto Teixeira

Não podemos vê-las com simpatia e espero ainda não terem sido incorporadas no Brasil. Do ponto de vista de comportamento, é um aspecto associado não só ao prazer de se expor ao risco, mas à emoção de alta intensidade. Há também um certo distanciamento da gravidade que a doença ainda significa, apesar do tratamento. O bareback ocorre em países desenvolvidos, que têm acesso a todos os recursos disponíveis, numa geração que não conviveu com os períodos mais duros, das maiores perdas. Temos de cuidar para que essa possibilidade não se espalhe.

ISTOÉ – Quais os resultados do Programa Brasileiro de Aids? .
Paulo Roberto Teixeira

Registramos em quase 20 anos de epidemia mais de 250 mil casos. Cerca de 150 mil pessoas morreram. Estimamos que existam cerca de 600 mil pessoas portando vírus no Brasil, o que significa 0,6% da população adulta e sexualmente ativa. Eles são menos da metade do 1,2 milhão de soropositivos que o Banco Mundial projetava há dez anos para o ano 2000. Esse número reduzido é resultado de uma mobilização imensa em todo o País envolvendo todos os setores, principalmente a área de Saúde do governo, a sociedade civil e as organizações-não governamentais. Há outros números que mostram essa tendência de regressão da epidemia em grupos mais vulneráveis, como homossexuais, profissionais de sexo e usuários de drogas injetáveis

ISTOÉ – A violência gera algum tipo de consequência na epidemia de Aids?
Paulo Roberto Teixeira

Talvez não, do ponto de vista epidemiológico. Mas traz sempre riscos adicionais para a população. Uma violência que provoque desde ferimentos que exijam intervenções cirúrgicas e transfusões de sangue, o que sempre é um risco, até fenômenos concretos como o risco de transmissão do HIV nos casos de violência sexual. O Brasil está organizado numa rede de instituições para apoiar e tratar profilaticamente pessoas vítimas da violência sexual, a fim de tentar neutralizar esse componente.
 

ISTOÉ – Em que pé estão as pesquisas da vacina contra a Aids? Quando o sr. acredita que ela estará no mercado?
Paulo Roberto Teixeira

Infelizmente, as pesquisas da vacina não receberam um investimento comparável ao da pesquisa de medicamentos, por serem menos rentáveis. Elas não são compradas em farmácias e o uso é intercalado em períodos de anos, enquanto os medicamentos costumam ser tomados diariamente. Outro fator são as constantes mutações do vírus, dificultando que se chegue a bons resultados. Há também o fato de o HIV ainda não ter um parâmetro conhecido de proteção, que permita uma resposta imunológica eficaz. Além do mais, existe o risco de processos contra os fabricantes, decorrentes de eventuais problemas com as vacinas. É impossível, portanto, calcular em quanto tempo teremos essa prevenção, mas pode-se dizer que será um período bastante longo, próximo de dez anos.
 

ISTOÉ – Em recente campanha contra a Aids, foi escolhida a cantora Kelly Key como protagonista. Houve protestos, segundo os quais ela não seria a pessoa indicada, por representar valores duvidosos. A campanha foi mantida assim mesmo. Algum aprendizado no episódio?
Paulo Roberto Teixeira

São vários. O primeiro, de que precisamos aperfeiçoar as articulações entre governo e entidades civis, principalmente as
ONGs, para garantir a elaboração conjunta das estratégias de trabalho.
A campanha foi mantida e agora podemos assegurar que houve uma certa confusão por parte de alguns grupos comunitários. Para eles,
nossa intenção seria promover os valores representados pela cantora, sem entrar em nenhum julgamento. Mas nós queríamos alguém que tivesse audiência com o público adolescente e falasse com segurança e franqueza da necessidade do uso do preservativo. Continuamos achando que a Kelly Key foi uma das pessoas certas para dar esse recado. A confirmação se deu num trabalho de avaliação da campanha, feito com todos os procedimentos técnicos necessários. Mostrou um grau de satisfação entre bom e ótimo, maior do que
90% para a população em geral.