O governo centrou fogo na decisão de entrar no jogo da negociação. Recuou da proposta original da reforma da Previdência na intenção de acomodar o pesado lobby do Judiciário e aplacar as reações negativas ao projeto, mas acabou chamuscando o próprio pé. O anúncio do acordo, que manteria a aposentadoria integral para futuros e novos servidores e reajustes iguais para os da ativa e aposentados, caiu como uma bomba na cabeça dos governadores, dos parlamentares, do mercado e também do ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Internamente, Palocci se mostrou contrário à idéia de permitir a paridade. Meia-volta, volver. O governo deu um passo atrás e o que estava acertado ficou incerto. E a reforma caiu no impasse. "As mudanças não podem ser tomadas unilateralmente nesse instante, sob risco de rompermos com aquilo que de mais importante construímos até agora: confiança entre o governo federal e os governos dos Estados”, disse publicamente o governador de Minas, Aécio Neves.

 
O recuo do recuo foi selado em Portugal, na quinta-feira 10, quando o presidente Lula, diante da pressão, reagiu e condicionou as mudanças a um novo pacto: "Qualquer negociação e acordo só serão feitos após consulta e anuência dos governadores”. Água fria na fervura, mas por pouco tempo. A temperatura começou a subir no Congresso. O senador Renan Calheiros (PMDB-AL) já avisou que se o governo recuar da negociação é crise na certa. O deputado Eunício Oliveira, líder do PMDB na Câmara, faz coro advertindo que negociar com governador não resolve. "Eles não controlam a bancada como querem fazer crer”, espetou. Até mesmo o deputado petista Paulo Paim (BA) entrou no núcleo duro da reação. "Negociação é com o Congresso, não é com governadores”, avisou.
 
O imbróglio do governo com o Judiciário começou no mês passado, na Festa Nacional do Doce, em Pelotas, quando o presidente Lula, em discurso, criticou os altos salários dos servidores deste poder: "Neste país ninguém é maior ou menor do que ninguém. Não posso aceitar que alguém neste país se aposente com R$ 17 mil por mês quando 40 milhões de pessoas não têm oportunidade de trabalhar.” As relações entre o Planalto e o Judiciário azedaram. Bombeiros governistas começaram a operar para dissolver o impasse político criado com as sucessivas críticas do presidente ao privilégio dos magistrados. Na noite de segunda-feira 7, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa, atravessou a Praça dos Três Poderes para um encontro tenso, mas decisivo, com Lula. Sem o boné das formalidades, Corrêa falou muito e Lula escutou mais ainda, sob o testemunho do ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil e articulador político do governo.
 
Troca – "Temos que manter a integralidade, com mais tempo de trabalho, para não acabar com a carreira de juiz”, pregou Corrêa. Lula não discordou e, a partir dali, o Planalto desbloqueou a manobra de entendimento que o Congresso ensaiava desde a semana anterior. Na quarta-feira 9, a intransigência do governo começou a se dissolver no café da manhã na casa do presidente da Câmara, João Paulo Cunha, que reuniu os líderes em torno de José Dirceu. A proposta alternativa, que admitia salários integrais em troca de mais tempo no serviço ativo e eliminaria o teto de aposentadoria, ganhou sinal verde do chefe da Casa Civil, que recomendou: "Chamem o Berzoini para discutir a proposta”. O ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, interrompeu a audiência que concedia para azeitar o caminho aberto por José Dirceu.
 
Na ponta do lápis, anotou uma diferença pequena nos números da proposta original do Planalto em comparação com o novo cálculo da Previdência: R$ 1,72 bilhão. Até 2023, a economia prevista pelo projeto inicial seria de R$ 52,44 bilhões, que cai para R$ 50,72 bilhões na alternativa inspirada pelo Judiciário. "Tudo bem, mas o ônus é do Congresso”, concedeu Berzoini, abençoando a negociação sem se comprometer com a paridade que iguala salários de ativos e inativos. Assim, em nome da governabilidade, o Governo Lula consumava seu recuo e adoçava sua proposta para não correr o risco de ser atropelado por liminares e recursos, defendendo privilégios à custa do direito adquirido. Empolgados com as conversas com Dirceu e Berzoini, os líderes do governo decidiram dobrar o último obstáculo: o próprio Maurício Corrêa. "Sei que o foro de decisões é aqui, neste colégio de líderes. Nós topamos”, sentenciou o presidente do STF.
 
Depois do entusiasmo inicial, a ressaca. Os governadores, que se reuniram três vezes para discutir a reforma, não gostaram. "Fiquei preocupado”, disse Geraldo Alckmin (São Paulo). Alckmin e seus colegas temem que no pacote da negociação entre em jogo a contribuição dos inativos, fundamental para os Estados. No cafezinho da Câmara, é dado como certo que os inativos da União serão taxados, mas que o projeto liberaria os Estados para fazer ou não o mesmo. A bomba da polêmica decisão cairia no colo das Assembléias Legislativas. "A reforma está abortada”, ecoou o ex-ministro e presidente da Comissão de Previdência da Câmara, deputado Roberto Brandt (PFL-MG). As centrais sindicais também criticaram o recuo. "O governo afinou muito cedo, na primeira batida de pé dos privilegiados”, condenou Paulo Pereira da Silva, da Força Sindical. Até a CUT fez críticas: "O governo está errado na integralidade e ao ceder à pressão dos altos salários”, afirmou o presidente da entidade, Luiz Marinho.
 
Já a corrente mais radical, que vinha batendo firme na reforma, aplaudiu. O ícone da rebeldia, a senadora Heloísa Helena (AL), não perdoou: "Rugiram ferozes como leões e, diante da toga, miaram como gatinhos”. O ex-líder do PT, Walter Pinheiro, disse que agora vota a favor da reforma. Refém do Congresso, Lula pode ser obrigado a antecipar outra providência que vinha adiando: a reforma ministerial, para se livrar de ministros tidos como "menos operativos” e acomodar o PMDB. Mas as reformas da Previdência e ministerial só serão tratadas na volta de Lula da Europa, semana que vem.