Em 1970, o polêmico escritor e dramaturgo Jean Genet (1910-1986), já um sessentão, veio ao Brasil a convite da atriz e produtora luso-brasileira Ruth Escobar para assistir à revolucionária montagem da peça O balcão, escrita por ele em 1957. Dirigido pelo argentino Victor Garcia, o espetáculo chamou a atenção pela feérica cenografia criada por Wladimir Pereira Cardoso, então marido de Ruth, que literalmente derrubou o teatro para criar uma espiral de ferro vertical. O público sentava-se à volta, em vários níveis, assistindo maravilhado ao bordel imaginado pelo francês, representado num palco de acrílico que subia e descia como um elevador. Ao final, Ruth correu até Genet para ouvir sua opinião. “Pas mal”, algo como “tudo bem”, respondeu
secamente o dramaturgo, em meio ao delírio da platéia. A passagem
do francês pelo Brasil é citada pelo americano Edmund White em Genet: uma biografia (Record, 798 págs., R$ 85) – incluída na Coleção Contra.luz, dedicada à sexualidade –, obra que está sendo lançada paralelamente a um inédito de Genet no Brasil, Um cativo apaixonado (Arx, 528 págs., R$ 59).

White conta que Ruth, descrita como “dinâmica e atraente”, hospedou Genet durante um mês e só se queixou do cheiro de seus pés sujos,
odor que ele comparava ao de “um dos melhores queijos franceses, o port-salut”. Ruth confidenciou a ISTOÉ que, na verdade, o problema
eram as pantufas desgastadas e fedorentas que ele insistia em calçar. “Comprei-lhe umas novas, só que guardou as velhas”, conta ela. Durante um mês, a atriz conviveu com o autor, a princípio monossilábico e crispado. Mas, ao fim da primeira semana, ele havia se transformado
num avô para seus filhos, rolando no chão e brincando de cavalinho.
Com ela e o marido, passava as noites, não raro na cama entre os dois, contando histórias de sua vida, evidentemente exageradas e mentirosas. Durante sua estada, não recebeu ninguém. Exceto o futuro presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem Ruth apresentou como um
ex-preso político que havia sido muito torturado. Um exagero que
ajudou a quebrar as defesas de Genet.

Homossexual, ladrão, desertor e, acima de tudo, um dos totens da literatura francesa, Jean Genet tinha fascínio pelas relações de dominação e submissão e abominava instituições, incluindo maternidade, fraternidade, Igreja, Estado e até a própria natureza. Paradoxalmente, era afetuoso. Na época em que veio ao Brasil, estava profundamente envolvido com os Panteras Negras americanos e, logo em seguida, abraçaria a causa palestina. Ambos os temas são exaustivamente estudados no caudaloso livro Um cativo apaixonado, o qual corrigiu as provas até as vésperas da sua morte em Paris, aos 75 anos, vítima de um câncer na garganta. Genet, cujo corpo foi transferido para o cemitério Larache, no Marrocos, onde viveu seus últimos anos, morreu na mesma cidade em que nasceu. Sua mãe, Camille Gabrielle, que era solteira, o abandonou num orfanato, aos seis meses, e nunca mais o viu.

Infância tranquila – Batizado Jean Marcel Genet, o menino foi adotado por uma família de Alligny, na região de Morvan, famosa por suas amas de leite e pela prática da adoção. Como os pais adotivos eram artesãos e não camponeses, a exemplo da maioria da população, teve uma infância tranquila, formando-se com louvor no primário, seu único estudo formal. Mas desde os oito anos já era descrito como ladrão, dissimulado e efeminado. Mandado para Paris, onde trabalharia como aprendiz de tipógrafo, fugiu na primeira semana e iniciou um rosário de detenções e escapadas que culminaram com sua transferência para a colônia penitenciária de Mettrey. Lá, conheceu seu primeiro amante de uma futura galeria de vários. Ainda em Mettrey, além de aprender os truques de sobrevivência nas ruas, descobriu que o alistamento militar servia como artifício para aliviar as penas. E assim o fez até tornar-se um desertor. Ou seja, enquanto escrevia, ia vivendo à sombra do Estado, ora como preso, ora servindo. A situação só se normalizou em 1944, quando conseguiu um indulto graças a um grupo de intelectuais liderados por Jean Cocteau, que já o considerava “o maior escritor da era moderna”. Jamais voltaria à cadeia.

Em termos intelectuais, o fenômeno Jean Genet é difícil de ser analisado. O fato é que, entre uma e outra prisão, se instruía. Em Paris, procurou André Gide, de quem lera Os frutos da terra e O imoralista. Defensor do homossexualismo, o escritor era por ele tratado como mestre. Genet produziria cerca de 40 obras, entre ficção, ensaios, poemas e peças teatrais. Também dirigiu um filme, Um canto de amor, em 1950, e escreveu vários roteiros. Dos cinco romances criados de enfiada, Nossa senhora das flores (1944), Milagre da rosa (1946), Diário de um ladrão (1949), Pompas fúnebres e Querelle de Brest (ambos de 1947) – que virou filme de Rainer Fassbinder –, apenas este último não é essencialmente autobiográfico. Entre suas principais peças estão o citado O balcão, Os negros (1958), Os biombos (1961) e As criadas (1947), que, em 1991, ganhou uma elogiadíssma montagem pelo não menos polêmico diretor José Celso Martinez Corrêa, sob o nome de As boas. Originalmente, a peça foi encomendada pelo ator Luís Jouvet, assim como Yasser Arafat
lhe encomendaria Um cativo apaixonado (citado no livro de White com o título de Prisioneiro do amor), no qual, com o brilhantismo
habitual, Genet mistura lembranças e experiências, como sua vivência nos campos palestinos.

Suas obras completas começaram a ser editadas em 1951 pela Gallimard francesa. O primeiro volume é dedicado ao monumental prefácio de Jean-Paul Sartre, batizado de Saint (São) Genet, ator e mártir. Ruth Escobar – que lembra do momento em que Genet abandonou seu retiro para visitar no então temido DOI-Codi a atriz Nilda Maria, que vivia Chantal em O balcão e fora presa por atividades subversivas – sempre evoca Che Guevara ao lembrar do dramaturgo, tão seco por fora e tão meigo por dentro. “Jean Genet endurecia sim, mas não perdia a ternura jamais.”