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ANARQUISTA
Tolstói foi excomungado porque se
opunha aos preceitos da Igreja Ortodoxa

No final da vida, o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910), autor dos monumentais romances “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, tornou-se um completo gênio – gênio do contra. Ele se opunha ao consumo de carne, ao sexo sem fins reprodutivos, aos impostos, à propriedade privada, ao serviço militar obrigatório e aos desmandos da Igreja Ortodoxa e do czarismo, regime que vigorava na Rússia. Deixou de publicar romances e passou a se dedicar a panfletos em que professava a sua conversão a um cristianismo “anarquista”, chegando a reescrever os Evangelhos à sua maneira. Encerrado em sua propriedade rural de Iásnaia Poliana, de 1,6 mil hectares e com 600 servos, ele comia o que plantava, tecia a própria roupa e escrevia compulsivamente. Tornou-se uma espécie de profeta que a vasta barba e o olhar ausente apenas acentuavam. São esses textos, reunidos a propósito do seu centenário de morte, que saem agora no Brasil sob o título de “Os Últimos Dias de Tolstói” (Penguin/Companhia das Letras).

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FILME
Christopher Plummer no papel de Tolstói em “A Última Estação”,
baseado nas cartas e no diário do escritor, agora reunidos em livro

Os escritos, que incluem também cartas, diários e ensaios sobre arte, foram reunidos pelo professor e romancista Jay Parini, que já havia se inspirado neles para a criação do livro“A Última Estação”, adaptado para o cinema em 2009. O mais antigo texto trata da conversão mística do autor em 1892 (“Uma Confissão”). Ele escreve: “Apesar de estar bastante convencido da impossibilidade de provar a existência de Deus (Kant demonstrou e eu bem entendi que isso não pode ser comprovado), mesmo assim eu procurava.” Não se deve concluir que sua relação com a religião passou a ser pacífica: o embate posterior com as incoerências da Igreja Ortodoxa está na origem de suas ideias mais radicais e provoca inclusive a sua excomunhão, aos 73 anos. Na “Resposta à Determinação do Sínodo”, ele não deixa por menos. “Escrevi a meus próximos que, quando eu morrer, eles não devem permitir que servidores da Igreja venham me ver, e que o meu corpo morto deve ser descartado o mais rapidamente possível.”

E assim foi feito. Seu túmulo em Iásnaia Poliana não tem lápide nem qualquer adereço: apenas uma gramínea. Ainda em vida, sua residência era alvo de uma verdadeira romaria dos chamados “tolstoístas”. O mais famoso deles foi o escritor Vladimir Tchert­kov, que pressionava Tolstói a abrir mão dos direitos autorais de sua obra e a abandonar a sua extensa propriedade – fato que realmente aconteceu quando, aos 82 anos, o escritor deixou a família e partiu em viagens pela Rússia como “um santo errante”. Semanas depois ele morreria de pneumonia numa estação de trens.

Os tolstoístas existem ainda hoje e seguem à risca os preceitos do mestre. Ao pregar em favor do jejum e do vegetarianismo, Tostói escreve:
“As pessoas se reúnem sob qualquer pretexto: batismos, enterros, casamentos, bênção de igreja, despedidas (…) Todas elas sabem que haverá comida, boa e saborosa, e bebida, e esse é o principal motivo que as faz reunir.” Esse ascetismo contamina suas ideias estéticas a ponto de afirmar que a canção acompanhada de voz é um “enfraquecimento da música”. No seu diário, ele registra em dezembro de 1900 que leu o livro “Assim Falou Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche, e que ficou convencido de que o filosofo alemão “estava absolutamente louco”. Tolstói também parecia sofrer de delírios semelhantes – talvez banhados pela absoluta genialidade.

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