Em sua guerra contra o Tribunal Penal Internacional (TPI), a corte multinacional estabelecida para julgar crimes de guerra, contra a humanidade ou genocídio, o governo de George W. Bush tentou uma nova e surpreendente manobra. Num único disparo, cortou a ajuda militar a 35 países, que se recusaram a conceder imunidade a cidadãos americanos em futuros processos daquela Corte. Com isso, Washington fechou seus cofres, salas de aulas a militares em treinamento, fornecimento de material bélico ou tático e inúmeros outros auxílios que eram prestados a Forças Armadas de nações, até agora, consideradas aliadas. O tiro, porém, pode ter acertado o próprio pé americano. Estão nessa lista negra locais onde a Casa Branca tem enorme interesse estratégico, como, por exemplo, a Colômbia, o Equador e a Rússia. O Brasil, que ratificou o tratado estabelecendo o tribunal sem dar vantagens especiais a cidadãos americanos, foi incluído na relação dos 35, mas tem recebido poucos obséquios militares dos EUA desde o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). A desvantagem, nesse como em outros casos, seria suportada pela indústria bélica ianque, que tem participado de concorrências públicas para a venda de armamentos e sofrerá perdas grandes. De todo modo, calcula-se que cerca de
US$ 470,6 milhões em ajuda e US$ 613 mil em programas de educação serão negados aos países punidos no próximo orçamento.

Nem todos os países que assinaram o texto integral criando o TPI receberam o mesmo tratamento. Foram excluídas 22 nações que ainda não ratificaram o acordo, apesar de terem posto seus jamegões no tratado de criação da Corte. Entre estes está o Afeganistão. Também foram poupados os membros efetivos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Japão, Coréia do Sul, Israel, Egito e Jordânia. Este último país, por sinal, indicou o príncipe Zeid Raad al-Hussein, diplomata representante de Aman na ONU, para ser o atual presidente da assembléia de países que assinaram o tratado de estabelecimento do tribunal. “A medida é no mínimo incongruente”, diz Richard Dicker, diretor da “Human Rights Watch”, organização internacional de direitos humanos. “Abre exceção para países como a França ou o Japão, por exemplo, que são grandes defensores do Tribunal Penal, mas ameaça cortar a ajuda a países como a Croácia, que depende de verbas e equipamentos para modernizar suas Forças Armadas ao nível exigido para ser admitida na Otan.” Os EUA apoiaram o ingresso croata no corpo da aliança militar ocidental. “Além disso, nos parece que a manobra de Washington revela certo desespero diante de uma causa perdida contra o estabelecimento da Corte”, disse Dicker.

A incongruência vai além desse caso. No que se refere à Colômbia,
onde os EUA mantêm um número maior de “observadores” e auxiliares militares do que os que estavam no Vietnã antes da guerra, na prática
o país incluirá a lista das exceções, já que dos US$ 100 milhões de
auxílio aprovados pelo Congresso americano àquela nação somente
neste ano, apenas US$ 5 milhões serão cortados. Sobre essa questão
o porta-voz do Departamento de Estado, Richard Boucher, diz: “A maior parte do dinheiro reservado à Colômbia já foi entregue. Não há como cortar a ajuda agora.” Mas o que acontecerá com verba, equipamento
e pessoal que iriam para Bogotá no próximo ano? “A questão será estudada. A Colômbia integra um rol de países cujas situações representam ameaças à segurança nacional dos EUA. Nesses casos, podem ser feitas exceções”, diz Boucher.

Bush alega que os americanos podem sofrer perseguições com motivação política em processos do TPI. Dão como exemplo os indiciamentos criminais a que os atuais vice-presidente, Dick Cheney, e secretário
de Estado, Colin Powell, estão submetidos na Bélgica. Os motivos para esses processos seriam supostos crimes na guerra do Golfo de 1991, quando os dois eram, respectivamente, secretário da Defesa e comandante do Estado-Maior conjunto das Forças Armadas. Ocorre que
o imbróglio belga envolve meramente uma corte nacional, que tem jurisdição apenas local. “Esses casos não têm nada a ver com o TPI. Inclusive, o tratado que estabelece este tribunal multinacional já criou algumas salvaguardas a autoridades americanas. O que não existem são as mesmas garantias de imunidades estendidas a qualquer cidadão americano”, diz o jurista John W. Hicock, que apóia o acordo. “É por isso que essa oposição americana já está sendo chamada nos meios jurídicos internacionais de ‘A Imunidade Henry Kissinger’ (ex-secretário de Estado americano, acusado de violação de direitos humanos). A intenção deste governo parece querer proteger do tribunal aqueles cidadãos que participaram de administrações anteriores e correm riscos de
indiciamento criminal por atos do passado”, diz Hicock.

Itamaraty critica Washington
No jargão diplomático, a nota oficial do Ministério das Relações Exteriores sobre a decisão dos EUA de suspender a ajuda militar para quem apoiou a criação do TPI é considerada quase um xingamento. Ao dizer que a assistência militar prestada pelos EUA ao Brasil “não é significativa”, o Itamaraty teria desprezado os EUA e dado um recado “muito duro e pouco comum em comunicados oficiais”, segundo fontes do ministério. “Claro que eles vão tentar represálias. Estamos preparados”, disse a ISTOÉ uma alta fonte militar. A verdade é que, há quase 30 anos, o Brasil vem se descolando da influência militar americana. Os submarinos da Marinha são de projeto alemão, o porta-aviões é francês e os tanques e helicópteros do Exército são europeus. “Furiosos os americanos vão ficar depois da concorrência dos jatos da FAB”, comentaram especialistas em defesa.

Entre os militares brasileiros, a reação foi semelhante. “Gostaria
mesmo que o governo não solicitasse mais a assistência americana, para que a nossa indústria de defesa se desenvolva”, disse o almirante Armando Vidigal, do Centro de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra Naval. “Para o Brasil, é melhor não ser vassalo e ter sua própria tecnologia de defesa”, emendou o coronel Amerino Raposo, do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos.

Eduardo Hollanda e Hélio Contreiras