Itália assumiu a presidência semestral da União Européia na terça-feira 1º de julho e o premiê italiano, Silvio Berlusconi, debutou como presidente da UE em estilo macarrônico. Ainda não acostumado ao jeito todo peculiar de fazer política do magnata italiano, o Parlamento Europeu entrou em alvoroço durante o discurso em que a Itália apresentou suas prioridades para seu mandato à frente do bloco europeu, realizado na quarta-feira 2 em Estrasburgo (França). Após o término da explanação de Berlusconi – seguidamente interrompido por vaias e manifestações de deputados europeus –, seguiu-se uma rodada de perguntas. Quando o parlamentar social-democrata alemão Martin Schulz questionou o mandatário italiano sobre o conflito de interesses entre seu cargo e o fato de controlar um gigantesco grupo de mídia, il Cavalieri, como o premiê é conhecido, demonstrou todo o seu talento para o histrionismo: “Na Itália estão fazendo um filme sobre os campos de concentração nazistas. Eu gostaria de sugerir que você fizesse o papel do capo (guarda) nazista. Ficaria perfeito.”

A boutade do premiê italiano causou profunda indignação no plenário, tanto nos alemães quanto em outros parlamentares europeus. “Meu respeito pelas vítimas do fascismo me impede de aceitar esse comentário. É difícil aceitar um presidente do Conselho que faz tal tipo de declaração”, afirmou o deputado Schulz. Impassível, Berlusconi retrucou que Schulz é que o estava ofendendo, afirmando que sua tirada havia sido uma ironia ao gestual e ao tom de voz do deputado, ironia essa que talvez a tradução não tivesse captado. Schulz e o presidente do Parlamento, Pat Cox, exigiram que Berlusconi se retratasse. Diante da recusa deste, Cox suspendeu a sessão. Acuado, Berlusconi ainda ofendeu os parlamentares tachando-os de “turistas da democracia”.

Na Itália, as declarações do Cavalieri deixaram a esquerda indignada. “Berlusconi mostrou que não tem cultura democrática, sendo incapaz de enfrentar seus opositores sem agredir”, disse Piero Fassino, líder dos Democratas de Esquerda (ex-comunistas). Até a direita, aliada do premiê italiano, ficou perplexa com a desastrada estréia de Berlusconi no cenário europeu: “Ele caiu numa armadilha. É lamentável”, comentou o vice-premiê Gianfranco Fini, da ultradireitista Aliança Nacional.

O estrago causado pela arrogância desastrosa de Berlusconi, que acabou se desculpando com o chanceler alemão, Gerhard Schröder, levou lenha na fogueira das frequentes críticas que muitos europeus fazem sobre sua inabilidade para liderar o bloco europeu. Durante o mandato italiano, será trabalhada a entrada de dez novos países à UE em 2004, e a Constituição Européia, que está sendo elaborada, tem de avançar. “Na melhor das hipóteses, Berlusconi será um líder imprevisível em um momento crítico para a UE. Na pior, ele poderia precipitar novos conflitos”, sentenciava no dia 30 de junho o jornal conservador britânico Financial Times, porta-voz dos setores conservadores. Ninguém esperava que o vaticínio pudesse se concretizar tão cedo.

Rumo à política externa comum
O sonho da unidade européia deu mais um passo decisivo para se concretizar. Mais de quatro décadas depois da constituição do Mercado Comum Europeu (MCE), em 1957, a União Européia (UE), com 15 integrantes plenos, 13 países aspirantes e uma moeda única, aprovou finalmente um anteprojeto de Constituição em reunião no balneário grego de Porto Carras. O documento foi encaminhado à cúpula da UE pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, presidente da Convenção Européia. O anteprojeto será a base para a negociação da Carta Européia e vai criar o cargo de ministro europeu das Relações Exteriores, responsável pela política externa e pela política de segurança do continente.

O anteprojeto da Constituição da UE sofreu restrições da Itália, Espanha e Portugal, que pediram que fosse mencionada no preâmbulo da Carta Magna a contribuição do cristianismo à civilização européia, ao lado da cultura greco-romana e do pensamento iluminista. A mesma reivindicação foi apoiada pela Polônia, uma das candidatas a fazer parte do clube europeu. Não por acaso, o papa João Paulo II também defendeu a mesma posição. Mas, enquanto a questão da inclusão do cristianismo no preâmbulo era objeto de discussões bizantinas – alguns acreditam que tal exigência foi feita apenas para dificultar a entrada da Turquia, majoritariamente muçulmana, na UE –, os europeus também debatiam questões mais terrenas, como o futuro político da União. Alguns, como o premiê britânico, Tony Blair, defendem que a UE deve ser uma confederação de Estados; outros querem a formação de um super-Estado, com política exterior comum e um sistema de defesa que possa ser utilizado, em crises graves, com o consenso europeu.

O sociólogo francês Alain Touraine disse a ISTOÉ que a consequência mais importante da criação de uma Constituição da UE será o surgimento de condições para que o continente tenha uma política internacional comum, ficando, assim, menos sujeito à hegemonia de Tio Sam. Para Touraine, a Carta Magna européia não vai criar uma nação européia, mas sim um Estado europeu com um ministro de Relações Exteriores capaz de definir estratégias internacionais para o continente. Desta maneira, poderão ser evitados episódios como a guerra da Bósnia (1992-1995) e do Kosovo (1999), quando a Europa foi incapaz de lidar com um conflito em seu quintal, sendo obrigada a recorrer aos americanos. “Haverá um tratamento prioritário para os interesses geopolíticos da Europa, e não apenas para as questões econômicas, como ocorreu nos últimos 40 anos”, diz Touraine, que também acredita que a Constituição estimulará o desejo de adoção de uma capacidade de defesa própria.

O momento não poderia ser mais oportuno. Empresas de vários países procuram se integrar, inclusive os russos com os franceses. A capacidade tecnológica militar européia já garante a produção de sofisticados aviões, mísseis, navios de guerra e sistemas eletrônicos. A Europa ainda tem um arsenal nuclear que pode reforçar a sua política de dissuasão. Isso não quer dizer que a estratégia mundial da Europa será oposta à dos EUA. Mas o que ficou claro é que não foi por acaso que o anteprojeto da Carta Magna foi aprovado depois de ficarem explícitas as diferenças entre a estratégia da Casa Branca e a adotada pelos europeus, notadamente a Alemanha, Bélgica, França e Rússia, durante a crise do Iraque.

Hélio Contreiras – Paris