A ministra do Meio Ambiente parte do zero para enfrentar a farra dos ?investidores?, que, cada vez mais, estão dilapidando a Amazônia

Maria Osmarina Marina da Silva Vaz de Lima nasceu sob o sol ardente do Seringal do Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco. E foi num berço modesto que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, aprendeu a lutar pela vida. Filha de seringueiros, magrinha e miúda, ela é a versão feminina de Chico Mendes, o homem da floresta, Francisco Alves Mendes Filho, seringueiro desde criança, que dedicou toda a sua vida à defesa dos trabalhadores e povos da floresta. Foi com ele que ela, em 1984, fundou a CUT do Acre. Marina virou ministra no governo Lula – algo impensável quando se lembra que, seringueira como os pais, aprendeu a ler e escrever já adolescente ao se mudar para Rio Branco, a capital do Acre, onde foi se tratar de uma hepatite. A Igreja Católica perdeu uma freira – sonho derrubado pela militância. A política ganhou uma guerreira de primeira linha, a mais jovem senadora eleita no País (em 1994, aos 35 anos), uma das mais íntegras num meio onde a integridade é relegada. Graças a Deus, como ela diz toda hora, é Marina Silva quem está cuidando de uma área que sempre funcionou como um “enfeite” do governo anterior para inglês – e francês, americano, alemão… – ver, essas coisas de marketing que pegam bem, uma farra para mercenários estrangeiros. Ela fez muito pouco até agora, mesmo trabalhando das nove da manhã às dez da noite. “Uma das coisas mais complicadas que nós temos é a falta de estrutura no ministério”, diz.

Complicações é o que não faltam na rotina da ministra. Todas de alta periculosidade, ora envolvendo empresários bandidos, ora jagunços armados, geralmente os dois juntos. Rios de madeiras nobres (e caras), como o mogno, praticamente em extinção, são extraídos ilegalmente no sul do Pará. Todos os anos são furtados pelo menos 2,4 milhões de metros cúbicos de madeiras de áreas indígenas e de unidades de conservação na região, o equivalente à carga de 240 mil caminhões, que em média carregam três toras cada um. Levantamento divulgado recentemente pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que, de agosto de 2001 a agosto de 2002, o desmatamento na Amazônia avançou 25 mil metros quadrados, seguindo-se ao avanço de 18 mil metros quadrados constatado de 2000 a 2001. “O que esse governo não quer fazer é repetir o ritual macabro de divulgar os números do desmatamento sem adotar medidas para contê-lo”, disse a ministra na terça-feira 1º. Com a palavra, Marina Silva.

ISTOÉ – Como o Ministério do Meio Ambiente está enfrentando o desmatamento da Amazônia?
Marina Silva

A diferença é que desta vez o ministério não está isolado.
O governo tomou a decisão de tratar essa questão de uma forma integrada, envolvendo todos os setores afetos ao desflorestamento
da Amazônia, como é o caso dos ministérios da Reforma Agrária, da Agricultura, dos Transportes e até mesmo da Integração Nacional. Coordenados pela Casa Civil, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o do Meio Ambiente, baseados na série histórica que vinha sendo divulgada pelo Inpe, começaram neste mês de julho uma análise dos dados de forma a qualificá-los para poder fazer diagnósticos, estabelecer cenários, visando medidas eficientes no combate ao desflorestamento da Amazônia.
 

ISTOÉ – Que tipo de medidas?
Marina Silva

Uma das ações fundamentais é fazer uma separação entre o que é desmatamento legal e o que é ilegal. Uma outra questão é fazer com que o acompanhamento do desflorestamento possa acontecer em tempo real. Para isso o Ministério do Meio Ambiente já está fazendo uma parceria com o Inpe, para que, a partir de 2004, toda a divulgação dos dados de desflorestamento possa acontecer todos os meses como forma de assegurar uma ação preventiva do desflorestamento. O programa de desenvolvimento sustentável, que está sendo elaborado pelo governo federal em parceria com os governadores dos Estados e os mais diferentes setores da sociedade, vai procurar responder a questões como infra-estrutura para o desenvolvimento, inclusão social, ordenamento territorial e um novo padrão de financimento em que o acesso ao crédito possa ser feito mediante critérios de sustentabilidade, levando em conta ainda a necessidade de que se tenha tecnologias adaptadas à região e voltadas para o desenvolvimento.

ISTOÉ – A contravenção é a regra das empresas na Amazônia?
Marina Silva

Nós já temos um grupo de empresas e empresários de vanguarda que têm um pensamento estratégico, responsabilidade social, responsabilidade ambiental. Embora sejam minoria, eles já constituem uma referência do novo paradigma do que são investimentos limpos, com qualidade social, com qualidade ambiental. Isso é uma conquista dos últimos anos graças às exigências da sociedade, o papel das autoridades ambientais, mas é uma minoria, infelizmente. Nós trabalhamos para que a lei e os instrumentos de controle possam cada vez mais operar no sentido de ir direcionando os setores produtivos para a postura de investimentos limpos e corretos em relação ao meio ambiente. As empresas que estão nessa vanguarda podem aferir por parte do consumidor a maior aceitação de seus produtos. O tráfico de madeira geralmente está associado ao tráfico de drogas. Você não pode ficar reprimindo apenas, como se estivesse enxugando gelo. Tem que trabalhar com um sistema de inteligência que combine as ações do Ibama, da Polícia Federal, da sociedade e as contribuições que o Exército e as polícias ambientais dos Estados podem efetivamente oferecer.
 

ISTOÉ – Qual foi a herança que ficou para seu ministério?
Marina Silva

Essas imagens que a gente vê de madeira boiando nos rios do Pará e em várias regiões da Amazônia estão lá há mais de dois anos. Não quero crucificar meus antecessores porque sei as dificuldades com as quais eles operaram. O ministério sempre foi tratado como se fosse uma “ONG governamental” e nunca como um órgão do governo que tem de ter competência e capacidade para agir. Ainda assim, tenho que ter a humildade para reconhecer que a mudança dessa condição ainda precisa acontecer na prática. Estamos trabalhando para efetivamente ter uma solução que moralize a questão madeireira na Amazônia, para coibir a contravenção e proteger aqueles que estão fazendo as coisas de uma maneira certa.

ISTOÉ – Isso demora para chegar a alguma ação efetiva?
Marina Silva

No começo do ano, o presidente Lula assinou um decreto visando estabelecer novas regras para a exploração do mogno na Amazônia, regras essas que atendem às exigências do anexo 2 da Cites (convenção internacional que trata da exploração de espécies em extinção), que estipula critérios mais rigorosos para a exploração do mogno, fazendo com que a fiscalização seja feita tanto pelo país produtor de madeira quanto pelo país comprador. Além disso, foi estabelecido um grupo de trabalho no âmbito do Ministério do Meio Ambiente para apresentar soluções para os 63 mil metros cúbicos de mogno apreendido. Essa madeira, de acordo com a lei, poderia ter sido incinerada, leiloada ou doada. A solução de incineração não foi viável porque se tratava de um grande prejuízo a uma riqueza que é patrimônio da sociedade brasileira. O leilão também não foi considerado porque acabava sendo um instrumento usado pelos contraventores para esquentar a madeira ilegal. A saída foi a doação para uma instituição
de inquestionável reputação, a Fase (organização não-governamental
do Rio de Janeiro voltada para o meio ambiente e a Amazônia), que irá exportar essa madeira após tê-la beneficiado e reinvestir os recursos nas comunidades afetadas.
 

ISTOÉ – Inclusive as indígenas?
Marina Silva

Inclusive as comunidades indígenas. Dos 63 mil metros cúbicos, de acordo com a decisão da Justiça acompanhada pelo Ministério Público, já foram doados à Fase 14,5 mil metros cúbicos, o primeiro lote de madeira, que dará uma quantia de mais ou menos US$ 2 milhões para reverter em benefício da sociedade em projetos socioambientais.

ISTOÉ – O ministério tem autonomia para punir uma empresa infratora?
Marina Silva

As autoridades ambientais têm autonomia para estabelecer as penalidades necessárias de acordo com a legislação ambiental existente no País, principalmente as penalidades preconizadas pela lei dos crimes ambientais.

ISTOÉ – Esses casos geralmente não acabam em pizza?
Marina Silva

É claro que no decorrer do processo os contraventores podem recorrer da decisão da Justiça. O que muitas vezes leva a uma certa morosidade dos processos, dando a impressão de que eles caíram no esquecimento. É fundamental que se tenha maior agilidade no julgamento dessas ações para que elas possam ser exemplares, orientando o setor produtivo para os investimentos da forma correta. O problema é que muitas vezes não se pode acreditar naquilo que alguns investidores dizem de si mesmos. Quando esses investidores dizem que a água contaminada está boa, você tem que fazer dois testes, além das análises químicas: primeiro, convidá-lo a beber um copo de água e, segundo, verificar
se ele não é um suicida.
 

ISTOÉ – Como a sra. se posiciona em relação à polêmica dos transgênicos?
Marina Silva

Existe uma falsa polêmica que tenta desqualificar o debate sobre transgênicos entre os que têm posição contra e os que têm posição a favor. Certa vez li que a forma como conhecemos as coisas é reveladora do nosso “ethos”, da nossa ética. Posso dizer que a
forma como decidimos as coisas também é reveladora do nosso “ethos” ou da nossa ética. Não se trata de ser contra uma ciência ou tecnologia. A questão é verificarmos qual o uso que se vai fazer desse avanço, para apurar se ele nos dá segurança em relação à saúde, ao meio ambiente e até mesmo aos nossos interesses comerciais. Dirimidas essas questões, caberá uma decisão política. O que o Ministério do Meio Ambiente está fazendo é trabalhar na direção da precaução. Na ausência de maior segurança, o melhor é ser cauteloso. E essa cautela vai no sentido do licenciamento ambiental para verificar se a questão dos transgênicos não trará um grande impacto na realidade brasileira.
É por isso que esse debate deve ser feito com transparência e sem nenhum tipo de sectarismo.
 

ISTOÉ – O que vai acontecer com os produtores que insistirem na soja transgênica?
Marina Silva

O governo Lula adotou uma medida provisória que em vários aspectos é muito corajosa porque reconhece que a soja transgênica é ilegal e estabelece que ela tenha um prazo para a destinação até o início de 2004 e instrumentos de penalização àqueles que, passada essa data, não tenham se adaptado à legislação. A medida estabelece também que aqueles que não plantarem soja convencional não terão acesso a crédito nem a nenhum tipo de negociação de inadimplência, além da obrigação da rotulagem mediante 1% da presença da soja transgênica em qualquer produto (no governo FHC esse limite era 4%). No momento, estamos fazendo um intenso debate entre os vários setores do governo, a sociedade e a comunidade científica para construirmos o melhor caminho para os interesses da sociedade brasileira.

ISTOÉ – Quatro anos são suficientes para resolver tantos problemas?
Marina Silva

São suficientes para o estabelecimento de uma nova política ambiental, que, considerando as diretrizes estabelecidas pelo novo governo – referentes à transversalidade, ao controle social, ao desenvolvimento sustentável e ao fortalecimento do sistema nacional de meio ambiente –, poderá dar uma grande contribuição no sentido de fazer com que o Brasil, uma potência hídrica com a maior biodiversidade do planeta e uma floresta tropical que é motivo de orgulho de todos os brasileiros, possa efetivamente estabelecer uma nova qualidade no tratamento da política ambiental. Em vez de uma ação isolada do Ministério do Meio Ambiente, que se crie uma cultura de governo que considere a variável ambiental em todas as ações do governo. Se conseguirmos isso já estaremos dando uma grande contribuição.

ISTOÉ – Qual a situação da política ambiental encontrada pela sra.?
Marina Silva

Nós estamos trabalhando junto com a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para fazer uma espécie de marco zero da situação ambiental em que encontramos o País no início do governo Lula. O objetivo é mostrar como encontramos a questão ambiental.

ISTOÉ – Essa não é a chamada faca de dois gumes? .
Marina Silva

Pode ser, mas preciso disso. Pode ser que o resultado não seja tão bom, mas eu preciso disso para ter um instrumento de cobrança da eficiência do meu próprio governo

ISTOÉ – Seu ministério tem dinheiro para fazer tudo o que a sra. pretende?
Marina Silva

Desde que assumimos o governo, à luz das novas prioridades estabelecidas em termos de política ambiental, estamos trabalhando para a elevação dos recursos para a área. Só que esses recursos
podem ser alavancados em outros setores do governo. Quando o Ministério da Reforma Agrária, por exemplo, decide que os projetos
de reforma agrária na Amazônia a partir de agora irão considerar a variável ambiental, isso é um investimento que deve ser contado como investimento ambiental. Mas não se trata apenas de recursos. É preciso combinar os recursos com as políticas adequadas e com a estrutura adequada. O Ministério não tem uma estrutura de pessoal permanente
e é fundamental a internalização de competências na gestão ambiental do País. Estamos trabalhando pelo concurso público e para a ampliação dos quadros do ministério.