Não há quem não tenha um desempregado por perto – um amigo, um familiar, um vizinho, uma filha ou filho que anda para baixo e para cima com um diploma universitário debaixo do braço. Como uma peste que se alastra sem controle, a falta de emprego é a maior tragédia nacional. As estatísticas impressionam e apavoram. A pesquisa Seade/Dieese de maio revela que quase dois milhões de pessoas continuam desempregadas na Grande São Paulo, o maior centro industrial, comercial e financeiro do País. Mostra também que quem está empregado tem a pior renda desde que o levantamento começou a ser feito, há 18 anos. O rendimento médio em abril, que foi de R$ 889, deveria ser de R$ 1.682 para que o trabalhador ganhasse hoje o mesmo que ganhava em 1985.

Não faltam números e medições para retratar esse descalabro, mas não há estatística que impressione mais do que cenas como a da
multidão que tentava se inscrever para trabalhar como gari no Rio de Janeiro. Gari varre as ruas, ou, de uma maneira mais elegante,
cuida da limpeza urbana, e no Rio ganha R$ 610 por mês, dinheiro que interessou a desempregados com ensino médio completo e até
com diploma de advogado e engenheiro.

Camila de Montier Ferraz, 25 anos, formada há dois anos em propaganda e marketing, não estava na fila dos garis – mesmo porque mora em São Paulo –, mas busca emprego com o mesmo afinco. Ela tem experiência e um belo currículo – já passou por duas agências de proa, a Young&Rubicam e a Neogama. Também estudou inglês (que o presidente Lula tem mostrado que não é tão essencial como parece). Nada disso tem adiantado – o que, no fundo, deve levantar a questão: para que impor tanto sacrifício à família para entrar numa faculdade, segui-la aos solavancos e concluí-la com a falsa ilusão de que, agora sim, vou começar a minha vida?

Camila está fazendo bijuterias e enviando currículo para agências de propaganda e empresas, mas não imaginava que querer trabalhar na área que estudou fosse tão difícil. O drama de Camila se transforma em número também nas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que confirmam o quadro desesperador do “desemprego aberto” (pessoas que procuraram emprego nos últimos 30 dias) na região metropolitana de São Paulo: ela está lá, entre 1,3 milhão de pessoas, o maior número desde outubro de 2001, o dado disponível mais antigo obtido com a atual metodologia.

Sem futuro – É um tormento que leva nordestinos de volta à sua terra (leia texto ao lado), jovens da classe média para o Exterior, um desespero intercalado com desânimo, uma preocupação com a qual a vítima acorda, passa o dia e dorme pensando. Estudo realizado pela Pythia Research, empresa especializada em pesquisas de mercado, revela que o desemprego no Brasil é um dos problemas sociais que mais têm preocupado a população – mais precisamente, 90% dos brasileiros. Em outra questão da mesma pesquisa, 25,2% dos entrevistados disseram acreditar que eles ou alguém de suas famílias podem perder o emprego nos próximos três meses.

A bela morena Kátia Batista dos Santos, 26 anos, foi atrás da miragem do emprego formal ao entrar na fila da Comlurb, a estatal carioca que está selecionando garis. Ela era um dos cerca de 17,5 mil candidatos que personificavam, no Sambódromo, a cara do desemprego no País. Ex-operadora de telemarketing, Kátia perdeu o emprego em maio. Perfil para gari, definitivamente, ela não tem. Com o segundo grau completo e acalentando o sonho de fazer faculdade de psicologia, essa carioca de Santa Cruz da Serra, zona oeste, é só preocupação com o futuro. “Será que nunca mais vou arranjar emprego?”, alarma-se.

Kátia concorre a uma vaga para o banco de reserva da Comlurb com outros 120 mil candidatos inscritos até o início da noite da quinta-feira 3. Ela corre atrás de um salário-base de R$ 280 mensais, além de adicional de insalubridade, tíquete-alimentação, vale-transporte e plano de saúde, o que totaliza
R$ 610. Desse enorme exército de desempregados, apenas seis mil serão convocados nos próximos dois anos pela companhia de limpeza. “A procura está superando todas as nossas expectativas”, comenta o gerente de gestão de pessoas
da empresa, Rafael Lerner. Os cálculos
iniciais da Comlurb apontavam o máximo
de 90 mil inscrições.

Primeiro emprego – O mercado de trabalho não tem motivos para esperar boas notícias em 2003. Economistas como Lauro Ramos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), não acredita em melhora significativa no número de ofertas de emprego no País. “O
mau desempenho de 2002 contaminou o crescimento econômico este ano. Era praticamente certo que, em termos de emprego, o ano de
2003 não seria de boas notícias”, analisa. A inflação está sob controle, mas não se espera um período de expansão para a economia brasileira porque, com o mercado externo em recessão, fica difícil aquecer as exportações, sufocadas pelas barreiras alfandegárias. A alternativa de curto prazo criada pelo governo foi o Programa Primeiro Emprego, anunciado com pompa no início da semana passada, mas o programa só sairá mesmo do papel quando as empresas começarem a receber
o dinheiro do governo para pagar os futuros jovens trabalhadores de
16 a 24 anos, dentro de 60 dias.

Cansado de esperar pela oportunidade, Leandro Lopes, 23 anos, também entrou na fila da Comlurb. Ele trabalha desde os 14 anos e cursa o supletivo para concluir o segundo grau. “Nunca tive carteira assinada”, diz o rapaz, pai de um menino de dois meses e meio. Morando ainda com a família em Campo Grande, zona oeste, já foi de tudo um pouco, de pedreiro a ajudante de cozinha, passando por motorista e garçom. “Não tenho medo de trabalho. Meu maior pânico é ficar sem dinheiro, ainda mais agora que tenho filho para sustentar”, diz Leandro. Se o governo estivesse conseguindo cumprir as promessas de campanha, talvez o pessimismo desse jovem não existisse. Do jeito que a economia está, no entanto, será praticamente impossível gerar os cerca de 250 mil empregos prometidos por Lula para o primeiro ano de governo.

Projeções do economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), do Rio, dão conta de que o nível de ocupação está intimamente relacionado ao crescimento do PIB. Ele estima que, para gerar 2,5 milhões de novos empregos por ano, a economia brasileira deveria crescer em torno de 4,8% anuais. “A fila para o concurso de garis é uma espécie de símbolo que revelou ao País inteiro um desempenho antes ocultado”, analisou o economista. Talvez seja por isso que a propagada mobilidade social do País esteja revelando situações extremas como a do engenheiro Guilherme de Oliveira, 47 anos, formado pela Faculdade Nunes Lisboa. Sem conseguir emprego na sua profissão desde 1997, ele é outro inscrito na Comlurb. Pai de um filho de 19 anos, garante que não ficará com complexo se virar um lixeiro. “Não tenho o menor preconceito.
Vergonhoso é ficar sem dinheiro no bolso e sem condições de
pagar as contas.” Guilherme acredita que, entrando para a Comlurb, ascenderia na empresa até chegar a um posto mais condizente com
seu nível educacional.

Quando o desemprego bate à porta de um trabalhador, ele não escolhe raça, sexo ou classe social. A ex-bancária carioca Mariângela Santos Mello, 43 anos, não acredita mais na possibilidade de voltar ao mercado de trabalho. “Além da idade avançada, estou defasada. Não tenho dinheiro para fazer cursos de informática e contabilidade, por exemplo.” Mãe de duas filhas, uma de 18 anos e outra de 12 anos, Mariângela não tem mais onde cortar suas despesas. Seu marido, Sebastião Mello, também perdeu o emprego. Há três anos, está sem carteira assinada. Programador, Sebastião diz estar “vivendo de bicos”, faturando no máximo R$ 700 por mês. “O que mais me dói é saber que minhas filhas estão seguindo o mesmo caminho”, comenta Mariângela. “Elas são as desempregadas de amanhã. O mercado de trabalho está cada vez mais seletivo e elas não têm como concorrer em igualdades de condições com um concorrente que estudou em boas escolas e se preparou a vida inteira.” É a próxima geração de desempregados em gestação.

 

Volta às origens

Foi-se o tempo em que São Paulo mudava a vida dos migrantes
que saíam do Nordeste em busca da oportunidade de viver com
um pouco mais de dignidade. Os migrantes estão voltando – “não necessariamente para o seu lugar de origem”, diz o demógrafo Fernando Albuquerque, do IBGE, gerente do projeto que, com dados do Censo 2000, avaliou esse retorno. As agroindústrias de Goiás
têm sido um chamariz para migrantes. O saldo migratório do Estado passou de 111.396 pessoas no período 1986/1996 para 203.000 no período 1995/2000. Também o Ceará começa a reter a migração: o saldo de entradas e saídas do Estado caiu de 123.500 para 23.000.
A explicação é sempre a busca de emprego, cada vez mais difícil
em razão das condições da economia do País. Segundo ele, o
processo de migração está fortemente vinculado à baixa escolaridade, o que em época de desemprego crescente contribui para que o migrante volte à sua origem.

O desempenho de grandes empregadores não dá muitas esperanças. A indústria de automóveis do Brasil, por exemplo, teve no primeiro semestre de 2003 seu pior desempenho nos últimos três anos, com uma queda nas vendas de 8% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo projeções dos fabricantes.

A economista Maria da Conceição Tavares repete que falta investimento para criar empregos, especialmente em algumas áreas onde esse investimento poderia criar empregos. Aponta a indústria naval, a siderurgia e a construção civil. “Se a indústria naval fosse reativada, dez mil empregos diretos seriam criados.” Com a crise econômica e a falta de uma política social, os brasileiros que saem em busca de ascensão não conseguem nem juntar o dinheiro para a passagem de volta, confirmando que a maioria das pessoas não tem sucesso no movimento migratório.