Um dos mais tradicionais times de futebol paulista, a Ponte Preta, de Campinas, que revelou craques como o centroavante Washington, vendido em 2002 para a Turquia por US$ 5 milhões, vive uma crise sem precedentes. Depois de vencer apenas três das 15 partidas que disputou no Campeonato Brasileiro, o time está na penúltima posição, o que o coloca na zona de rebaixamento. Não bastasse isso, mesmo após a milionária venda de Washington, a Ponte Preta vive uma séria crise financeira. Mas falta de dinheiro, no entanto, não faz parte do cotidiano do presidente do clube, Sergio Carnielli. Um amontoado de documentos – obtidos pelo promotor distrital de Manhattan, Robert Morgenthal, a partir de uma apreensão em um escritório de Nova York especializado em lavagem de dinheiro, denominado Beacon Hill – mostra que Carnielli enviou em agosto e setembro de 2001 uma bolada de US$ 9,8 milhões para vários bancos dos Estados Unidos. De acordo com a papelada, que Morgenthal repassou à Polícia Federal brasileira, somente entre os dias 22 e 29 de agosto, Carnielli fez 18 repasses em seu próprio nome, que totalizaram US$ 7,034 milhões. Outros US$ 2,680 milhões foram enviados pela Tecnol Ind Óculos Ltda., empresa de propriedade de Carnielli, entre abril e setembro de 2001.

Os documentos mostram que, após sair da conta da Beacon Hill no
Chase Manhattan Bank de Nova York, toda a dinheirama do cartola da Ponte Preta seguia para os seguintes bancos: First Bank, de Miami,
Banco Wells Fargo, de San Francisco e Banco UBS, de Zurique, na Suíça. Os titulares dessas contas são a própria Tecnol ou a empresa BHPC Marketing Inc. Toda essa transação ocorreu aproximadamente um ano antes de Washington ser transferido para o futebol turco. Na ocasião,
o valor da transação, que, segundo a Ponte Preta teria sido de US$ 5 milhões, foi desmentida pelos dirigentes do Fenerbahce, que compraram
o passe do jogador. Os cartolas turcos disseram ter pago US$ 10 milhões para levar o centroavante.

No meio da papelada recolhida pelo promotor Morgenthal, há evidências de que Carnielli usou os serviços do doleiro de Campinas Felice Aggio, que também providenciou a abertura da conta Tucano no Chase Manhattan Bank de Nova York. Até 1999, as contas Tucano e da Beacon Hill, que estão sendo investigadas pelo Ministério Público dos EUA, eram abastecidas por remessas de doleiros a partir da agência do Banestado de Nova York. Depois dessa data, quando a agência do banco estatal paranaense foi fechada, as duas contas passaram a receber recursos de contas de doleiros paraguaios e brasileiros em outros bancos americanos.

Procurado por ISTOÉ, Carnielli desmentiu ter enviado recursos para o Exterior. O cartola negou também conhecer Fellice Aggio. Fazendo questão de frisar que está licenciado da presidência da Ponte Preta, Carnielli mudou o tom da conversa ao ser perguntado se os repasses via doleiros não seriam produto de caixa 2 de suas empresas, que atuam na área de exportação e importação. “Vocês podem até colocar o meu nome na reportagem, mas, pelo amor de Deus, tirem o nome da Ponte Preta, que está falida, dessa história”, disse.

Aperto na CPI – A dificuldade em explicar seu comportamento também colocou o Banco Central na linha de fogo da CPI do Congresso Nacional, que investiga a rede de lavagem de dinheiro intermediada pelo Banestado. Os técnicos do BC ouvidos na quinta-feira 3 não conseguiram convencer deputados e senadores da necessidade das autorizações especiais, que, em abril de 1996, liberaram cinco bancos – Real, Banco do Brasil, Bemge, Araucária e Banestado – de cumprir normas mais rigorosas na identificação de saques e depósitos feitos em contas CC5 – contas de não-residentes, autorizadas a operar em reais e moeda estrangeira – (leia mais à pág 32) em Foz do Iguaçu. O BC diz que o objetivo era facilitar operações de comércio na Ponte da Amizade, mas a liberalidade acabou mesmo ajudando doleiros a enviar ilegalmente bilhões para fora do País.

Embora tenha identificado irregularidades em remessas por intermédio de Foz do Iguaçu ainda em 1997 e enviado 300 denúncias ao Ministério Público, o BC só revogou as tais autorizações em dezembro de 1999. “Até agora, eu era favorável à autonomia do BC, mas essa demora mostra enorme fragilidade. Estou revendo a minha posição”, avalia o deputado Eduardo Valverde (PT-RO), autor do pedido de abertura da CPI. “No mínimo, o BC deveria ter revogado rapidamente as autorizações. Não descarto que tenham ocorrido pressões políticas e prevaricação”, completa. “O BC só percebe as irregularidades depois, e mesmo assim é lento para agir”, critica o presidente da comissão, senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT). “O BC sempre chega atrasado. Além disso, essas porcarias que o Gustavo Franco (ex-diretor do BC e responsável pelas autorizações especiais) fez por conta própria tinham que passar pelo Conselho Monetário Nacional”, atacou o senador Pedro Simon (PMDB-RS), referindo-se às autorizações concedidas aos cinco bancos. Franco já foi convocado para depor na CPI. Falta marcar a data.

Além da demora para rever as autorizações, outro aspecto chamou a atenção dos parlamentares. Só no final de 1999 o Banco Central resolveu abrir processos administrativos para investigar a participação dos cinco bancos nas remessas irregulares. “Está claro que a prioridade do BC era a política econômica. Eles (os dirigentes do BC na época) tinham que facilitar o fluxo de capital, não importando se as medidas favoreciam o crime, o narcotráfico e a evasão de divisas. Sabiam da total falta de fiscalização das operações”, ataca o líder do PCdoB na Câmara, Sérgio Miranda (MG), lembrando que Gustavo Franco, junto com o chefe do departamento de câmbio, José Maria Carvalho, foram condenados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2001 por terem dado as autorizações aos bancos sem anuência prévia da diretoria do BC. Carvalho, ainda no cargo, pôs em prática as autorizações depois do OK de Franco. O funcionário depôs na CPI junto com o atual diretor de fiscalização do BC, Paulo Sérgio Cavalheiro, e outros técnicos da instituição. No início do depoimento, Carvalho chegou a afirmar que as autorizações tinham partido da diretoria do banco. Mudou o tom depois que Miranda mencionou o relatório do TCU segundo o qual foi Franco quem decidiu implantar as flexibilizações, só comunicando sua decisão aos demais diretores dias depois. O chefe do departamento de câmbio alegou que depois um parecer do TCU o inocentou, mas Miranda afirma que o tal parecer foi revogado, prevalecendo a condenação.

 

COMO FUNCIONAM AS CC5

As CC5 são contas correntes permitidas para estrangeiros que não moram no Brasil, mas que, por algum motivo (negócios, emprego ou investimentos), precisam receber e fazer pagamentos no País. Além de funcionarem como contas comuns, recebendo depósitos de brasileiros, as CC5 também podem, sob algumas condições, converter seus saldos em moeda estrangeira e transferi-los para o Exterior. Por causa dessa característica especial, as CC5 atraem doleiros interessados em fazer remessas ilegais. Eles escalam laranjas estrangeiros para abrir as CC5 – em geral, uruguaios e paraguaios de origem modesta que transitam em regiões de fronteira, como Foz do Iguaçu, e estão dispostos a emprestar o nome para operações ilícitas – e depois passam a usá-las para enviar o dinheiro sujo de seus clientes brasileiros para o Exterior. Para dificultar o rastreamento, usam artifícios como depósitos em nome de empresas de fachada, factorings e em espécie.

No caso do Banestado, foi possível identificar vários brasileiros
donos de dinheiro sujo que usaram esquemas de doleiros porque, depois de passar pelo laranjal de Foz rumo ao exterior, as remessas faziam uma escala em 137 contas, também controladas por doleiros, abertas na agência do banco estadual paranaense em Nova York,
e, de lá, os doleiros distribuíam o dinheiro para as contas correntes dos beneficiários finais (os clientes brasileiros) espalhadas em vários países. Foi essa papelada que a PF conseguiu pegar. Também no esquema do Banestado, o trabalho dos doleiros ficou mais fácil
porque o Banco Central relaxou nas normas de identificação
dos depósitos na região.