Os três segundos durante os quais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou com o boné do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na quarta-feira 2, no Palácio do Planalto, desencadearam uma enxurrada de protestos no Congresso e das entidades ligadas aos produtores rurais. Em seu primeiro encontro depois de eleito com 27 membros da cúpula do MST, Lula mais uma vez não resistiu ao improviso, que tem gerado dores de cabeça ao governo. O presidente deu abraços, distribuiu sorrisos e, em público, conversou amenidades com os dirigentes dos sem-terra. Ganhou um mimo do MST – um balaio recheado de doces, biscoitos, uma bola costurada no assentamento de Veranópolis (RS) e um boné. Ao desembrulhar a cesta, Lula abriu um pacote de biscoitos, levou um à boca da líder Fátima Ribeiro e deu outro para Egídio Brunetto, um dos coordenadores nacionais do movimento. Ao ver a bola, os fotógrafos e cinegrafistas pediram ao presidente para exibir suas habilidades. “Não posso, por causa do protocolo”, disse Lula. À vontade, pediu ao líder do MST Ênio Bohnnenberger que o substituísse na missão.

O sem terra mostrou que é tão duro no futebol quanto nas reivindicações. O desempenho futebolístico de Bohnnenberger
também não convenceu. Até aí estava tudo dentro do planejado.
O lance seguinte é que embolou o meio de campo. Com a mão direita, Lula meteu na cabeça o boné vermelho do MST com a inscrição
“Reforma Agrária – por um Brasil sem latifúndio”. A simpatia presidencial não foi suficiente para conquistar uma trégua no campo e deu motivos de sobra para críticas.

Na conversa reservada entre os 27 atacantes do MST e os técnicos do governo – os ministros José Dirceu (Casa Civil), Luiz Dulci (Secretaria da Presidência), Miguel Rosseto (Reforma Agrária) e José Grazziano (Segurança Alimentar) e os três líderes no Congresso –, o diálogo, que durou cerca de 2h30m, foi mais duro. O MST levou uma lista com 16 propostas e deixou o gramado do Planalto com promessas de que uma reforma agrária “massiva e de qualidade” terá um incremento a partir do segundo semestre. Apesar das declarações de que o encontro foi uma “goleada de 5 a 0 no latifúndio”, nas palavras do capitão do MST, João Pedro Stédile, o problema é o de sempre: falta de recursos. Entre outras coisas, o MST pediu o imediato assentamento de 120 mil famílias e R$ 1 milhão até o final do governo Lula, em 2006.

As metas palacianas são muito mais modestas: 60 mil assentados este ano, com água, luz, saneamento, saúde e estradas. A boa vontade, entretanto, esbarra na disponibilidade financeira do Ministério da Reforma Agrária. Depois de passar pela implacável tesoura do ministro Antônio Palocci (Fazenda), o orçamento da pasta – R$ 462,6 milhões –, foi encolhido para R$ 161 milhões, que dariam para assentar apenas 11 mil famílias, menos de 20% da meta estabelecida. Rosseto sonha em obter mais verbas e aposta no uso de terras públicas da União e dos Estados para atingir o número prometido. E foi só. O presidente Lula não pediu
e o MST também não prometeu trégua nas invasões. “O governo não
tem por que pedir trégua, pois não tutela os movimentos civis. Ao governo cabe fazer cumprir a lei”, diz o ministro da Reforma Agrária.
“Não houve conversa de trégua. O governo se compromete com a reforma agrária. Se for feita, os conflitos no campo vão diminuir”,
reforça o líder do MST Gilmar Mauro.

No mesmo instante em que Lula se confraternizava com os líderes do
MST em Brasília, a onda de saques, invasões, bloqueios de estradas e ocupação de prédios públicos varria quatro Estados do País. Em Minas Gerais, 400 trabalhadores rurais fecharam as vias de acesso à cidade de Buritis, no noroeste do Estado. No Rio Grande do Norte, foi fechada a estrada que liga a cidade de Mossoró a Fortaleza e também a Prefeitura de Santa Maria, a 20 quilômetros de Natal. Em Cuiabá (MT), militantes do MST ocuparam pela segunda vez em uma semana a sede do Incra. Em Maceió, 400 trabalhadores rurais ligados ao MST invadiram a Companhia de Energia. O sujeito passando fome faz qualquer besteira”, argumentou Stédile. A demonstração de força não ficou só a cargo do MST. Os fazendeiros do explosivo Pontal do Paranapanema (SP) fizeram questão de demonstrar na tevê seu poderio bélico. Um pelotão de 15 homens encapuzados, com revólveres, fuzis AR-15 e carabinas 44 fez uma sessão de treinamento de tiro no mesmo momento em que acontecia a reunião no Planalto. A disposição de tratar invasões a bala aconteceu, de fato, na quinta-feira 3, no Paraná. O agricultor Emílio José Ferreira foi atingido com três tiros depois que um grupo de sem-terra tentou invadir uma fazenda do noroeste do Estado. Os disparos foram feitos por seguranças da fazenda. O estado de saúde de Ferreira é estável.

O tiroteio ecoou no Congresso. O líder oposicionista, senador Artur Virgílio (PSDB-AM), protocolou o pedido com 35 assinaturas para abertura de uma CPI destinada a investigar as invasões feitas pelo MST: “O que se assiste hoje é a uma sinistra e perigosa escalada que o governo tolera de maneira silenciosa, por vezes indecorosa.” Na Câmara, o afago também gerou muitas broncas. “É o início de um processo de radicalização. Quando o presidente usa o boné do MST, passa a idéia de que está estimulando o conflito”, avaliou o líder tucano Jutahy Magalhães Júnior. Ex-presidente da UDR e um dos líderes da bancada ruralista, o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO) criticou Lula. “Ao apoiar um movimento que descumpre a lei colocando seu boné, ele leva a população a um estado de perplexidade. Seu gesto pode estimular invasões”, afirmou. “O presidente não pode assumir o símbolo de um movimento que insiste em se manter à margem da lei, que invade propriedades, saqueia e rouba cargas”, bradou o líder do PFL, José Carlos Aleluia. Mas não só a oposição ficou irritada com as deferências de Lula. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, confessou sua preocupação e até o líder aliado, Renan Calheiros (PMDB), está angustiado com os desdobramentos: “Quando o prefeito fecha a prefeitura (Divaldo Pereira, prefeito de Presidente Epitácio, no Pontal) por causa dos conflitos, está se repetindo o que ocorreu com as Farcs”. Pela cabeça do presidente não passou nada disso, apenas um boné.

 

Barrada no PT

Foi uma reunião tensa. No final, os senadores do PT decidiram, por oito votos a quatro, afastar Heloísa Helena (PT-AL) da bancada do partido no Senado. A decisão transforma Heloísa em uma espécie de pária, pois não poderá se manifestar em plenário em nome do partido nem participar de reuniões da bancada. Chorando, a senadora saiu da reunião dizendo que foi vítima de uma estratégia “sorrateira” e que vai recorrer à Executiva do PT. “Usaram uma desculpa esfarrapada para não recorrer à comissão de ética do partido. Querer roubar meu mandato é demais. Só não digo que é uma palhaçada porque respeito os profissionais de circo”, atacou, misturando lágrimas à sua conhecida combatividade. Segundo o líder do governo, Aloizio Mercadante (PT-SP), a senadora foi afastada da bancada porque tem sido omissa na defesa do governo Lula.

“Ela só fez, em seis meses, uma única defesa do governo. No mais, tem se aliado ao PSDB e ao PFL em matérias difíceis para o governo”, acusou. Como consolo, Heloísa Helena recebeu o apoio emocionado de seu colega Eduardo Suplicy (PT-SP), um dos quatro que votaram a seu favor (os outros foram a própria Heloísa e as senadoras Serys Slhessarenko (MT) e Ana Júlia (PA). Suplicy pediu que a bancada volte a se reunir na próxima semana para rever a decisão. Mais ainda, lançou em seu site uma enquete pedindo aos internautas para votarem contra ou a favor de Heloísa. Ganhou sua recompensa: um beijo e um longo abraço da senadora alagoana, que ainda insinuou que Suplicy estaria “precisando de uma namorada”.

Eduardo Hollanda