Nutridos por um legítimo fervor patriótico, os brasileiros se inflamam na hora de defender o mineiro Alberto Santos Dumont como incontestável inventor do avião contra a pretensão americana de atribuir o feito aos irmãos Orville e Wilbur Wright. Mas se o orgulho pátrio é ferido quando são anunciados com estrondo os festejos americanos para comemorar o centenário do primeiro vôo do aeroplano Flyer, dos Wright, anunciado em 17 de dezembro de 1903 – façanha tingida de controvérsias, como a ausência de testemunhas qualificadas –, pouco ou quase nada se tem feito no País para preservar a memória de Santos Dumont e de outros grandes pioneiros da aviação. A três anos do legítimo centenário do primeiro vôo do 14 Bis em Paris – a ser completado em 23 de outubro de 2006 –, cacos da memória aeronáutica brasileira começam a ser lentamente colados depois de décadas de sucateamento numa inacreditável cronologia de desacertos. A história começa com a derrocada financeira da Fundação Santos Dumont, que administra o Museu da Aeronaútica, culminando com a transferência de seu acervo – com aeronaves históricas, jóias e documentos – do Pavilhão Governador Lucas Nogueira Garcez, no Parque do Ibirapuera (chamado de Oca pelo seu formato arredondado), para o inadequado Cemucam (Centro Municipal de Campismo), uma área de 20 mil metros quadrados localizada no km 25,5 da rodovia Raposo Tavares, na cidade de Cotia.

É lá, num espaço mais apropriado a visita de escoteiros, com sérios problemas de umidade, que invenções de Santos Dumont, como o conversor marciano – engenhoca que impulsiona esquiadores a subir encostas e foi uma de suas últimas criações –, estão longe dos olhos do público. O conversor está encaixotado. Parte do canhão paradoxal – invenção para resgatar naufrágos – também está lá, ao lado de aviões históricos, livros, fotografias e quadros, que só não estão em condições piores porque uma equipe de restauradores faz, literalmente, o que pode para salvar o acervo.

O início do fim do Museu da Aeronaútica começou quando a heróica aviadora Ada Rogato – falecida em 1986 – deixou a fundação no início dos anos 80. O museu acabou fechado por mais dez anos, época em que foi alvo de saques constantes, que atingiram a memória da própria Ada Rogato. O motor americano Continental 90 hp do Cessna 140 em que ela fez uma viagem solitária, sem um rádio sequer, até o Alaska foi roubado. Ainda que sem o motor, o Cessna – com uma mensagem do presidente Getúlio Vargas em seu corpo de metal – está hoje no Cemucam, ao lado do P-47 Thunderbolt pilotado pelo lendário coronel Nero Moura na campanha brasileira na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Sessenta e sete bombinhas desenhadas nas laterais do avião indicam suas missões bem-sucedidas. Pelo menos no Cemucam, os trágicos saques que aconteciam na Oca cessaram. Mas é impossível saber ao certo o que foi perdido ou não. A conservadora Priscila Delgatto, que trabalha no lugar, atesta que o diagnóstico das perdas é impossível de ser feito atualmente, e há uma infinidade de caixas, com documentos, a serem abertas.

José Ribeiro de Barros, sobrinho de João Ribeiro de Barros, um dos maiores ases da aviação brasileira, que comandou, em outubro de 1926 a julho de 1927, a travessia do Atlântico Norte e Sul a bordo do hidroavião Jahu, diz que num roubo ao cofre do museu, ainda na Oca, sumiram de 200 a 300 peças de prata, na forma de condecorações recebidas por seu tio. Pelo menos, sabe-se que o troféu Harmon, uma das maiores honrarias recebidas por ele, está em Cotia. Para se ter uma idéia da importância da epopéia do Jahu, o americano Charles Lindbergh fez a travessia do Atlântico – ainda que sozinho – 22 dias após os brasileiros. José Ribeiro guarda desde 1992 um boletim de ocorrência sob o número 035299 que mostra como o acervo do museu estava vulnerável na Oca. O relato do boletim policial é trágico. Conta que um visitante acabou ficando amigo de um dos vigias – “um jovem senhor” que se apresentava como oficial da Aeronaútica – e passou a ser presenteado com objetos e livros raros do acervo. A amizade azedou e o tal sujeito, “um apaixonado por aviões”, resolveu denunciar o vigia, outrora generoso. Disse que o flagrou praticando “magia negra com animais” dentro dos aviões e o viu roubando “peças valiosíssimas” e escondê-las no duto de ventilação. A história, que acabou arquivada, ainda fala de um receptador que teria em sua casa uma bomba de um caça P-47 Thunderbolt e um foguete do inglês Gloster Meteor, um dos primeiros jatos utilizados no Brasil, e que pretendia – embora sabe-se sem conseguir – vender o motor de um
P-47 por US$ 48 mil.

Diante de tanto abandono, José Ribeiro entrou na Justiça para reivindicar o bem mais precioso da lembrança do tio: o próprio Jahu, assim batizado porque o comandante João Ribeiro de Barros nasceu em Jaú, no interior de São Paulo. O hidroavião Savoia Marchetti S-55, o único modelo no mundo, estava corroído pelos cupins e escapou de ser serrado ao meio na intenção de ser levado ao Cemucam, em Cotia, onde nunca chegou. O Jahu aguarda recursos para a restauração protegido no hangar do Grupamento de Rádio Patrulha Aérea da Polícia Militar, para onde foi removido graças a interferência judicial. O endereço se explica. João Negrão, o co-piloto, pertencia à antiga Força Pública. Pelo menos no hangar, o enorme hidroavião de quatro toneladas e meia, que saiu de Sesto Calende e depois Gênova, na Itália, e chegou à represa de Santo Amaro, em São Paulo, está livre dos cupins e da umidade. José Ribeiro de Barros quer que o avião volte ao domínio da família e prepara um documentário sobre a saga do tio. “A fundação virou lugar de burocratas e políticos. O Jorge Yunes (empresário, um dos presidentes) fez uma festa rave no museu, na época da Oca, para lançar uma bebida energética. Festa daquelas em que as pessoas ficam ligadas até de manhã. Pelo menos na PM, o Jahu está bem guardado”, desabafa. Ainda assim, é triste ver um avião de tamanha importância perfurado pelas marcas dos cupins e documentos que fazem parte de sua história – como sua carta de navegação original – em retalhos.

O Jahu não foi para Cotia, ao contrário de outras aeronaves históricas. A transferência do Museu da Aeronaútica da Oca suscita polêmicas intensas. Em 1999, a Brasil 500 anos – atual Brasil Connects – fez um acordo com a Fundação Santos Dumont para ocupar durante dois anos – renováveis por cinco anos – o espaço do Ibirapuera, comprometendo-se a construir dois hangares no Cemucam – o que foi cumprido – e dar à fundação R$ 10 mil mensais, o que também foi feito. A questão é que, tão logo os aviões saíram, a Brasil Connects – conhecida por organizar a exposição Guerreiros de Xi’an e os Tesouros da Cidade Proibida – ganhou a Oca em definitivo. O então vice-prefeito Régis de Oliveira revogou a concessão do espaço que pertencia à fundação e a transferiu para a instituição, na época comandada pelo banqueiro Edemar Cid Ferreira. O curioso é que quem presidia a fundação na época do acordo era o empresário Jorge Yunes, um dos melhores amigos de Celso Pitta, mais tarde conhecido pelos empréstimos que destinava ao então prefeito. Pitta reassumiu seu lugar e ratificou o ato de seu vice. A Fundação Santos Dumont perdeu o espaço nobre da Oca para sempre e o pagamento dos R$ 10 mil foi aos poucos suspenso. O ex-prefeito Celso Pitta lembra que a fundação “não conseguiu equacionar problemas financeiros que permitissem a manutenção do acervo” e, segundo ele, uma área nobre da cidade não estava sendo bem utilizada. Quanto à história da concessão ter sido revogada, ele diz não se lembrar de detalhes. João Carlos Veríssimo, atual diretor presidente da Brasil Connects, lembra que a instituição gastou US$ 6 milhões para recuperar a Oca, que estava abandonada junto com o Museu da Aeronaútica. “Se o museu fosse
um sucesso, estaria tudo em ordem, e não precisaríamos gastar tanto dinheiro num investimento em prédio público. O museu não tinha
mais visitação nenhuma.”

O acordo, porém, é alvo de fortes oposições. Paulo Mattos, ex-presidente da fundação, acusa. “O Pitta fez um ato tirano passando o espaço para a Brasil Connects. Para eles, foi literalmente um negócio da China. O Edemar percebeu e papou. Foi um crime de lesa-pátria.” O atual presidente da fundação, o major-brigadeiro José Vicente Cabral Checchia, prefere tentar aprender com tantos erros passados.“ O problema da fundação é que nos últimos 20 anos ela foi usada apenas como símbolo de status para seus diretores.” Ian Thomas Comber, presidente da Associação das Aeronaves Antigas e Clássicas, tem a mesma opinião. “A diretoria da fundação foi inchando, enquanto acontecia este crime contra a memória nacional.” Décio Côrrea, presidente da Associação dos Proprietários de Aeronaves, engrossa o coro dos revoltados. “Trata-se do acervo relativo a Santos Dumont mais importante do mundo. Roubaram até um relógio. Foi um saque total. Um amigo meu, ainda na época da Oca, pisou num documento no chão. Era a certidão original de nascimento de Santos Dumont. Depois veio aquela proposta obscena para que tudo saísse do Ibirapuera.” O sociólogo Marcos Villares, sobrinho-bisneto de Santos Dumont, confirma a existência do relógio e, “infelizmente”, seu desaparecimento. Trata-se de um relógio de bolso, e não de pulso como se pensa, que foi dado a Santos Dumont pela realeza da Bélgica. Foi fabricado especialmente pela Cartier. Em 1978, Alberto Villares, sobrinho-neto do inventor, levou o relógio a Paris para ser fotografado pela Cartier. Marcos Villares tem uma lembrança mais triste. Da cúpula de vidro com seu suporte de feltro totalmente vazia. Cansado do descaso, Marcos Villares vem se empenhando em preservar como pode a história do antepassado famoso. Mas resigna-se. “Não é só a memória da aviação que sofre, é só ver a situação das cidades históricas brasileiras.”

O pesquisador Henrique Lins de Barros, autor de três livros sobre Santos Dumont, entre os quais o recém-lançado Santos Dumont e a invenção do vôo (Jorge Zahar Editor), justifica o descaso. “Parece uma falta de estima crônica, uma falta de sensibilidade. A perda do patrimônio é muito rápida e é importante que o Brasil faça uma autocrítica deste episódio. Ou se recupera a memória ou vamos ser sempre o país do Carnaval.” Lins de Barros se preocupa que o barulho em torno dos irmãos Wright acabe por legitimá-los como únicos inventores do avião. “Os americanos se acham o centro do mundo. O problema é que eles querem anular os outros inventores. E não existe um inventor, mas vários inventores do avião e o que realizou o primeiro vôo, que foi Santos Dumont.”

Atualmente a batata quente queima as mãos do major-brigadeiro Checchia, e ele tenta fazer sua parte com dignidade. Conseguiu um acordo com a Prefeitura de Guarulhos, que desde maio de 2002 repassa R$ 26.250 mensais à fundação. Dinheiro destinado à recuperação das peças que ainda estão no Cemucam e para a reforma de um espaço na Base Aérea de São Paulo, que funciona como o Museu Aeronaútico de Guarulhos e consegue inclusive manter visitas monitoradas de estudantes. Ainda que pouco conhecido – está localizado próximo ao aeroporto de Cumbica –, o museu conserva aviões como o T-6D, muitos anos utilizado pelo comandante da Esquadrilha da Fumaça, major Arthur Braga, e em seu teto aparece, suspenso e restaurado, o Demoiselle nº 21 original. Outras raridades também estão conservadas. Como o chapéu panamá com que Santos Dumont apagou o incêndio em um de seus dirigíveis e acabou deformado com as abas abaixadas e se tornou uma espécie de amuleto. Ainda que bem cuidado, o lugar é acanhado para acervo de tamanha dimensão. Mas, como diz o major-brigadeiro, “só críticas não adiantam”. Ele clama por mais apoio financeiro e por um local definitivo. Quem acena com uma solução próxima é a Prefeitura de Guarulhos. Edmilson Souza Santos, secretário municipal de Cultura, já entrou em contato com o arquiteto Oscar Niemeyer para que ele projete um museu da Aeronaútica para abrigar as peças. As instalações ocupariam uma área nos arredores do aeroporto de Cumbica e ficariam em Guarulhos. Ele estima o custo da obra em torno de R$ 50 milhões. “Vamos ter que captar recursos federais e internacionais. Guarulhos tem vocação para a aviação e o turismo de negócios. Antes do aeroporto tínhamos três hotéis, hoje temos 17. Gostaria que até 2006 o museu já existisse. Pois se não fizermos uma grande festa no centenário do 14 Bis, os franceses vão fazer.” O secretário tem razão. A imagem de Santos Dumont no Exterior ainda é forte.

Trata-se do único brasileiro que batiza o relevo da lua. A cratera de oito quilômetros de diâmetro, 1,1 quilômetro de profundidade, está localizada na extremidade norte dos Montes Apeninos e circunda a parte leste do Mar das Chuvas. Para quem gosta de astronomia, as coordenadas são 4.8º Leste/27.8º Norte. Mas, por aqui, há muito a fazer. Num momento de desânimo, o ministro do Superior
Tribunal Militar, Flávio Flores Cunha Bierrenbach, ex-presidente da Fundação Santos Dumont, chegou a cogitar que o acervo, que se deteriorava na Oca, fosse doado para o Exterior, depois de tentar em
vão ajuda do governo Maluf, prefeito na época. “Era melhor doar do que perder, nem que fosse para os franceses ou italianos.” Não bastasse tantos desencontros em torno do acervo, ainda há pendências entre
o Museu Paulista – também conhecido como Museu do Ipiranga – e a Fundação Santos Dumont sobre peças que foram emprestadas ainda
nos anos 50. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) faz a mediação da disputa, mas o que mais lhe interessa é saber o que pode ter sido roubado. Afinal, precisa alertar a Polícia Federal e a Interpol para impedir que objetos e documentos rumem clandestinamente para o Exterior. Como se vê, no Brasil a memória de Santos Dumont ainda é um caso de polícia.

 

Por Ruy Flemming*
Lições que vêm de muito longe

Há algumas semanas, levei meus filhos até o Parque do Ibirapuera para visitar a exposição Os Guerreiros de Xi’An e os Tesouros da Cidade Proibida, montada na Oca. Fantástica a cultura da China. Pudemos ver uma série de objetos que contam uma história de alguns milhares de anos. Lembrei que, há muitos anos, fui à mesma Oca. Lá era o Museu da Aeronáutica de São Paulo, onde, entre outras peças, havia um acervo de Alberto Santos Dumont, certamente um dos mais consagrados gênios que o Brasil já produziu.

Há muito tempo não se pode mais visitar o museu. Com a morte da aviadora Ada Rogato, que o dirigia, aquilo ficou às moscas. Ficou às moscas e foi se deteriorando. Ficou às moscas, foi se deteriorando e sendo saqueado. Falando em saque, muita gente ficou horrorizada com as cenas da mais recente guerra do Iraque. Dentre as imagens que causaram impacto, estão as dos museus que tiveram seus acervos destruídos. Aquilo deixou muita gente abismada, sem saber que coisas semelhantes, guardando as devidas proporções, acontecem aqui, bem debaixo dos nossos narizes. Histórias são contadas aqui e ali de iniciativas que tentaram, sem êxito, preservar o patrimônio aeronáutico que estava na Oca.

É uma pena que as peças não tenham sido destinadas ao museu no Campo dos Afonsos. Algumas pessoas ligadas à aviação indicaram o Museu do Comandante Rolim. Uma briga política não permitiu. Mais de 800 mil pessoas já visitaram o museu chinês. Os guerreiros chineses embarcam de volta para casa com a certeza de que cumpriram, milhares de anos depois, o papel de preservar sua cultura e defender suas tradições. Uma vez mais foram vencedores de uma batalha. Eles nunca imaginaram poder conquistar corações e mentes em lugares tão distantes como fizeram aqui. Pelo que fizeram e pelo que fazem até hoje, cada um daqueles guerreiros, que são milhares, tem uma consideração muito especial por parte de seu país. Apesar de serem tantos, a viagem para o Brasil foi cercada de todas as garantias, precauções e cuidados, como se fossem únicos. Eles voltarão para casa e serão preservados com muito cuidado.

Espero que jamais venham a saber a que era destinado o espaço que ocuparam. Espero que não tenham a menor idéia de como tratamos os heróis que escreveram parte da nossa história – ficariam indignados. Gostaria que a imagem gravada na retina dos guerreiros fosse a de olhares respeitosos de homens, mulheres e crianças brasileiros reverenciando toda a história e cultura que estavam representando. Para trás fica a Oca, que ao longo dos últimos anos foi se esvaziando e que não temos mais condições de preenchê-la completamente. Maior que a tristeza da partida dos heróis chineses é a tristeza de não podermos mais usar o espaço vazio da Oca com nossos próprios heróis. Provavelmente a Aeronáutica brasileira perderá o espaço, que de qualquer forma, nos últimos anos, não serviu para nada além de brigas políticas que só destruíram o acervo.

A principal cidade da América Latina e uma das maiores do mundo
não tem mais um museu público que preserve os grandes nomes daqueles que escreveram as páginas da aviação brasileira. O incrível
é que, apesar de tudo isso, ensinamos aos nossos filhos que somos
os inventores do avião.

Ficamos parados observando outros países respeitarem seus antecessores. Crescem embalados por seus heróis de verdade. E nós, infelizmente, assistimos a mais um episódio de descaso e desrespeito. Nós só não podemos nos acostumar com isso. A comunidade aeronaútica brasileira reserva o dia 23 de outubro para reverenciar o feito de Santos Dumont. Há quase 100 anos ele decolou do Campo de Bagatelle,
na França, com o mais pesado que o ar. Em 2006, ano do centenário, a comemoração mais justa seria a abertura de um museu, onde
este feito pudesse ser lembrado todos os dias do ano, e não apenas no dia do aviador.

* Ruy Flemming é piloto desde 1981, foi da Esquadrilha da Fumaça de 1992 a 1995, e atua como diretor da Associação dos Pilotos de Helicópteros do Estado de São Paulo (Aphesp)