Aquela casca raivosa que Nando Reis incorporou durante duas décadas na figura do baixista dos Titãs e compositor de canções viscerais, do tipo Igreja e Bichos escrotos, ficou largada em algum canto, igual a pele de cobra. Está certo que muito do personagem, como ele mesmo afirma, se amoldava à cena da banda. Não era exatamente um fotograma fiel de sua personalidade. “Tudo que sempre fiz vem da mesma matriz, e meu vigor nunca foi necessariamente traduzido em camadas sonoras”, justificou ele a ISTOÉ. “Não vejo diminuição de adrenalina. Agora, vejo no meu trabalho mais uma intensificação de sentimentos do que uma espuma de agressividade.” A explicação acontece em momento especial na carreira de Nando Reis. Ele acaba de lançar seu quarto álbum solo, A letra a, o primeiro depois da sua saída dos Titãs, ocorrida em
setembro de 2002, provocando outra baixa num dos mais importantes grupos do rock nacional, que hoje está com apenas cinco dos seus
oito antigos integrantes.

A letra a é um disco supermelodioso, tecido à maneira clássica, sem grandes invenções, com instrumentos tão básicos quanto sua concepção. “É uma filtragem ligando meu gosto ao meu campo de domínio, que é a composição.” Nando quis usar os elementos básicos para potencializar a singularidade de cada música, somando o cuidado com a produção e a maneira como o disco foi musicado, sem ter a obrigação de abrigar vários timbres. “Este campo delimitado aumentou o meu domínio sobre a concisão.” E também sobre a qualidade geral, há que se determinar. A começar pelo pop-rock de letra otimista da faixa-título – apresentando backing vocal da filha Sophia, 15 anos –, na qual há uma profusão de violões e guitarras e teclados de som vintage que irão percorrer todo o disco, em maior ou menor intensidade.

Nando compôs todas as 12 uníssonas músicas do CD, mas o ato solitário não causou uma atitude centralizadora, já que todo o processo sonoro
foi dividido com os músicos e os engenheiros de som. Desde seu segundo disco solo, Para quando o arco-íris encontrar o pote de ouro (2000), ele vem sendo acompanhado pelo tecladista Alex Veley e pelo baterista e percussionista Barret Martin, ambos americanos. O novo trabalho ainda traz as guitarras de Carlos Pontual e o baixo de Felipe Cambraia, todos formando uma seleção para encarar com brilho qualquer palco internacional. Basta ouvir a luminosa Dentro do mesmo time, um olhar detalhista, insinuante, sobre o comportamento feminino, moldado por
uma melodia de tamanha delicadeza e ritmo, para não ficar impassível.
Ou E tudo mais, na qual o violão slide, temperado com uma percussão tropical, constrói um blues-rock para, no refrão, desembocar num rock nada titânico. Outro quesito importante a destacar em A letra a
também lançado em vinil, numa edição limitada, assim como a primeira tiragem do CD com capa de papel cartão – é o tom adequado que
o cantor encontrou para sua voz. Nando Reis nunca se mostrou em estado tão sólido.