É fácil identificar um estrangeiro na confusão de uma metrópole. Ele geralmente anda em outra velocidade e, não raro, se perde diante da variedade de estímulos. Em contrapartida, distingue-se por uma qualidade especial. Consegue ver arquiteturas e situações que os passantes locais já não notam, seja por terem se tornado bastante familiares, seja por terem sido tão recalcadas que entraram numa espécie de ponto-cego da sensibilidade. Mas se o viajante é um fotógrafo, a posição de observador privilegiado costuma ser garantia de excelentes registros, caso da mostra Olhares cruzados, em cartaz na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. A exposição reúne 80 fotos do paulista Cristiano Mascaro e da berlinense Sibylle Bergemann, cada um fotografando a cidade do outro.

Não fosse pelos cartazes de palavras intermináveis, a Berlim de Cristiano Mascaro passaria por qualquer metrópole européia. Banhada pela mesma luz matizada com que costuma registrar a capital paulista, a ex-cidade dividida traz poucos signos identificáveis, como indica a foto de um corredor branco de mármore trazendo ao fundo um vulto negro. Lembrança da Alphaville de Jean-Luc Godard, a imagem foi feita no aeroporto de Tempelhof, hoje um prédio fantasma quase desativado, que por 11 meses serviu de ponte aérea para o abastecimento da cidade durante o bloqueio soviético, no final dos anos 1940. Outra imagem de épocas passadas é a vista da ponte sobre o rio Spree. A confusão de tempos fica por conta de um dirigível congelado no céu chumbo e da famosa torre de televisão ao fundo. “Não fui fazer uma reportagem para revista de turismo”, diz Mascaro. “Quis dar a minha visão da cidade, fotografando pessoas e a vida cotidiana.”

A afirmação explica a ausência de um enfoque mais arquitetônico, marca registrada do fotógrafo, em favor de uma profusão de retratos de berlinenses com recortes que descontextualizam as situações banais. Um bom exemplo é a foto de um grupo de homens olhando na diagonal enquanto confraternizam com cerveja. “Esta foto foi feita no momento de um gol do zagueiro brasileiro Lúcio, jogador do Bayer Leverkusen”, explica Mascaro, que esteve em Berlim na primavera, estação mais extrovertida, o que facilitou suas perambulações. À época, andou tanto com o equipamento a tiracolo que desenvolveu uma tendinite. “Quando já estava aprendendo alemão, tive de voltar”, brinca.

Mesma fome de imagem parece ter tomado a alemã Sibylle Bergemann,
a julgar pela variedade de temas do seu ensaio. Feitas durante duas estadas – em abril e maio de 2001 e novembro de 2002 – suas fotografias flagram o caos visual da megalópole paulistana, com as favelas emoldurando arranha-céus na região da avenida Águas Espraiadas
ou as desoladas janelas dos prédios vizinhos ao elevado Costa e Silva. Seus registros também mostram uma cidade que preserva um muro invisível, mas real, revelando o lado brega das festas de elite e o clima melancólico dos botecos do centro deteriorado. “Vi muitas fotos de
São Paulo, inclusive dois livros de Cristiano Mascaro, mas só consegui compreender o contraste entre o pobre e o rico quando estive lá”,
contou Sibylle a ISTOÉ.

Ela confessa que, a princípio, se sentiu insegura nas ruas, especialmente por causa dos pivetes. “Fiquei feliz quando as pessoas começaram a me pedir informações. Senti que começavam a me ver como uma delas.” A familiaridade ativou a veia crítica da fotógrafa, uma das melhores da Alemanha. Basta ver o enquadramento opressivo no qual ela enreda um casal e seus torsos diminutos, aprisionados pelo concreto de uma estação do metrô. Poderia ter saído de um filme expressionista dos
anos 1920, mas é São Paulo, comparada pelo escritor alemão Carsten Probst, no brilhante ensaio do catálogo, a um corpo desmembrado,
de entranhas calcárias.
 

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