A afirmação é do embaixador brasileiro nos EUA, Rubens Barbosa, que acompanhou passo a passo o encontro com George W. Bush

O Brasil deve investir no aumento das exportações de produtos industrializados para os Estados Unidos, não se importando com as dificuldades que a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) enfrenta, que podem até provocar o adiamento de sua entrada em vigor, prevista para janeiro de 2005. A tese é do embaixador Rubens Barbosa, que comanda hoje a embaixada brasileira
em Washington e é considerado um dos maiores especialistas em Comércio Exterior do Itamaraty. Ele destaca que, hoje, 67% das exportações brasileiras para os Estados Unidos são de produtos industrializados, com tarifa zero ou muito baixa, regime tarifário que, para produtos agrícolas, por exemplo, só será alcançado quando a Alca entrar em vigor. Para o embaixador, o Brasil vai duplicar ou até triplicar suas exportações para os EUA, “com ou sem Alca”, só precisando que os exportadores ampliem o leque dos produtos oferecidos e sejam “mais dinâmicos” na busca de novos clientes. Testemunha dos encontros entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu colega americano George W. Bush, Barbosa insiste que a Alca não foi tema das reuniões da semana passada em Washington. Segundo o embaixador, os dois países centraram esforços onde não há divergência, com sucesso. Sobre a
Alca, Barbosa cerra fileiras com seus pares do Itamaraty no sentido de que conteúdo, e não prazos, é o mais importante. Afinal de contas, boa parte das pendências da Alca já foi transferida para a Organização Mundial do Comércio (OMC). Na terça-feira 24, antes de voltar para
os EUA, Rubens Barbosa falou a ISTOÉ.

ISTOÉ – Aceitando o prazo de janeiro de 2005 para concluir a negociação da Alca, o Brasil, que já falava em tocar o acordo em ritmo moderado, recuou?
Rubens Barbosa

Não há recuo algum. A Alca apareceu na reunião de passagem, com a menção à co-presidência da Alca por Brasil e Estados Unidos e a importância do livre comércio na região. O presidente Lula disse que é contra o protecionismo, mas não se discutiu, repito, prazos da Alca. O comunicado conjunto cita o ano de 2005, mas ressalta a necessidade da conclusão “exitosa” das negociações em torno da Alca. Essa palavra é importante. Exitosa é uma negociação equilibrada, balanceada, em que nossos interesses estejam incluídos. A data está definida há oito anos. Não sei de onde tiraram isso de que houve uma mudança, um recuo. Nós reafirmamos nossa posição sobre o rumo das negociações incluindo no documento a palavra exitosa.

ISTOÉ – Se chegarmos a janeiro de 2005 sem essa conclusão exitosa…
Rubens Barbosa

A gente não assina. O que importa é o conteúdo. Não é a questão do prazo. O prazo é apenas uma meta indicativa.
 

ISTOÉ – Temas da Alca já foram remetidos para a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). E é certo que lá as negociações vão atrasar. Como fica a Alca nesse contexto?
Rubens Barbosa

Está difícil, mas ainda temos esperanças. Se as negociações de Doha atrasarem, isso vai afetar todos os cronogramas, inclusive o da negociação da Alca. O princípio, aqui, é o de single undertaking, ou seja: nada está finalmente negociado sem que todos
os acordos estejam negociados.
 

ISTOÉ – Ou seja, não fecha Alca enquanto não fechar Doha? .
Rubens Barbosa

É, não fecha enquanto não estiver sinalizada toda a negociação. Um resultado equilibrado, em que se crie uma situação na qual todos ganhem. Enquanto isso não ocorre, não há a situação exitosa. O que estiver pendente em Doha, não dá para resolver aqui. Quem criou o problema foram os EUA. Eles levaram para a OMC questões como a legislação antidumping e subsídios. E nós então mandamos para a OMC a discussão sobre propriedade intelectual e investimentos

ISTOÉ – Como foi o encontro dos presidentes?
Rubens Barbosa

Barbosa – Foi uma reunião de cúpula, não apenas um encontro presidencial. Desde dezembro estava decidido que haveria a participação de ministros dos dois lados. Foi a primeira reunião de cúpula em 170 anos de relações entre Brasil e Estados Unidos. Eles só faziam esse tipo de reunião com Canadá, México e União Européia. Aprofundamos as relações bilaterais e discutimos temas do interesse dos dois países, definindo áreas prioritárias – energia, ciência e tecnologia, proteção ao meio ambiente, educação, saúde e comércio, tudo dentro da agenda positiva.

ISTOÉ – Qual a área com maiores avanços?
Rubens Barbosa

Energia, que saiu do zero. Assinamos um acordo de cooperação para uma ampla parceria nas questões do hidrogênio, do sequestro de carbono, da modernização do setor, fontes renováveis de energia e tecnologias na área de energia e segurança na exploração de petróleo offshore (no mar).
 

ISTOÉ – Esses acordos se traduzirão em investimentos?
Rubens Barbosa

Isso abre possibilidades enormes. O biodiesel, por exemplo. Nos EUA, o biodiesel é produzido a partir da soja. Aqui no Brasil se usa a mamona. O Brasil é um dos grandes produtores mundiais de soja e é natural que empresas internacionais imaginem usar a soja brasileira no biodiesel. Já existe até uma empresa americana atrás de um sócio brasileiro para isso. Este novo emprego da soja pode representar um aumento nos preços internacionais, beneficiando o Brasil.

ISTOÉ – Lula terá mais dificuldades para lidar com Bush, um conservador?
Rubens Barbosa

No primeiro encontro entre os dois em dezembro, Bush abriu a reunião dizendo o seguinte: “Presidente, aqui nessa cidade (Washington) tem gente que acha que alguém como eu não pode se dar bem com alguém como o senhor. Nós estamos aqui para provar que eles estão errados.” Os dois reconhecem que há diferenças de pensamento, divergências no relacionamento, mas isso é subentendido e explicitado de maneira muito amistosa. Sabem da posição de cada um, mas também que é importante para o relacionamento dos dois países superar isso. O presidente Lula foi a Washington defender o interesse nacional brasileiro, dentro de um espírito de respeito mútuo. Foi isso o que ocorreu.
 

ISTOÉ – As divergências em relação à Alca então não foram o centro do debate?
Rubens Barbosa

Ao contrário do que se especulou aqui, a idéia antes e durante a reunião foi focar nos pontos de convergência para definir justamente a agenda positiva. Não se estava pensando em debater divergências. Por isso, a Alca, o aço, o suco de laranja ficaram de fora. Antes do encontro, fui consultado sobre nossa posição a respeito do suco de laranja, do aço. A resposta foi a mesma, não serão discutidos. São pontos de outra agenda, a das diferenças.

ISTOÉ – Brasil e Estados Unidos estão em atrito?
Rubens Barbosa

Ao contrário, temos uma relação excelente com os EUA. Não me lembro de outro período tão positivo, tão favorável. Temos consultas regulares sobre todas as áreas em um contexto de franqueza e fluidez que nunca houve. Só há conflito com os EUA nas questões comerciais. E nessa área os dois presidentes decidiram não tocar. Há os canais próprios para isso.
 

ISTOÉ – Essa posição não seria decorrente do fato de que os EUA ainda não se pronunciaram sobre a posição brasileira em relação à Alca? Ou seja, não tinham o que dizer e por isso preferiram nem tocar no assunto?
Rubens Barbosa

De jeito nenhum. Ninguém pensou nisso. Já era uma decisão tomada. Detalhe nenhum foi tratado. É difícil para vocês acreditarem, mas é verdade.

ISTOÉ – Com o tratamento Vip, os EUA não tentaram amaciar o lado brasileiro para futuras negociações na pauta comercial, onde há conflito?
Rubens Barbosa

Barbosa – Não. Acredito que isso está mais relacionado a interesses geopolíticos, ao projeto de reeleição do presidente Bush,
à importância do Brasil e do presidente Lula, ao interesse dos EUA nos programas sociais brasileiros.
 

ISTOÉ – O que se fechou sobre o Fome Zero?
Rubens Barbosa

Desde o primeiro encontro o presidente Bush elogiou muito a visão do presidente Lula de produzir fatos concretos na área social. Agora ele reafirmou isso, dizendo que apoiaria o programa Fome Zero. Concretamente, o governo americano propôs apoiar o programa brasileiro, não com recursos – o presidente Lula não pediu isso nem eles ofereceram –, mas com informações sobre a experiência americana. O programa alimentar americano começou há 70 anos com o presidente Roosevelt, que criou os food stamps (cupons para compra de comida) logo que assumiu o governo, no final da Depressão. Essa posição do presidente Bush foi um dos pontos altos do encontro.
 

ISTOÉ – Já surgem críticas segundo as quais o presidente Lula anda viajando demais. O que o sr. acha?
Rubens Barbosa

No caso do Brasil, que adotou uma política agressiva de comércio exterior, a diplomacia presidencial é importantíssima. A presença do presidente Lula é muito importante para nós, projetando o Brasil e defendendo os interesses nacionais. Quando ele está no Exterior, está defendendo emprego, exportação, melhoria no nível de vida. Está trabalhando para a melhoria da economia. O presidente tem uma presença importante, as pessoas respeitam o presidente. Isso facilita muito o nosso trabalho.

ISTOÉ – Diante do contencioso comercial histórico existente entre Brasil e Estados Unidos, é possível progredir?
Rubens Barbosa

 Há uma margem enorme de avanço. O comércio bilateral é de US$ 30 bilhões. As exportações brasileiras para os EUA estão em torno de US$ 15 bilhões. Em 1985, 17 anos atrás, o Brasil exportava para os EUA US$ 7 bilhões. A China exportava os mesmos US$ 7 bilhões. Em 2002, o Brasil exportou US$ 14 bilhões para os EUA, e a China exportou US$ 142 bilhões. Há espaço para crescer. Veja bem, 67% do comércio do Brasil com os Estados Unidos, em termos de valor, entra lá com tarifa zero ou praticamente zero. Os outros 33% das exportações é que são afetados por barreiras tarifárias. O problema está nos produtos agrícolas – são 57 itens com tarifa acima de 50%. Entram tabaco, açúcar, leite, suco de laranja. Não se exporta mais por causa da tarifa elevada. Os dez primeiros produtos brasileiros mais exportados para os EUA, com tarifa baixa, são industrializados. O que precisamos é diversificar a pauta
de produtos industrializados.

ISTOÉ – Diante do contencioso comercial histórico existente entre Brasil e Estados Unidos, é possível progredir?
Rubens Barbosa

 Há uma margem enorme de avanço. O comércio bilateral é de US$ 30 bilhões. As exportações brasileiras para os EUA estão em torno de US$ 15 bilhões. Em 1985, 17 anos atrás, o Brasil exportava para os EUA US$ 7 bilhões. A China exportava os mesmos US$ 7 bilhões. Em 2002, o Brasil exportou US$ 14 bilhões para os EUA, e a China exportou US$ 142 bilhões. Há espaço para crescer. Veja bem, 67% do comércio do Brasil com os Estados Unidos, em termos de valor, entra lá com tarifa zero ou praticamente zero. Os outros 33% das exportações é que são afetados por barreiras tarifárias. O problema está nos produtos agrícolas – são 57 itens com tarifa acima de 50%. Entram tabaco, açúcar, leite, suco de laranja. Não se exporta mais por causa da tarifa elevada. Os dez primeiros produtos brasileiros mais exportados para os EUA, com tarifa baixa, são industrializados. O que precisamos é diversificar a pauta
de produtos industrializados.

ISTOÉ – O caminho é crescer na fatia de 67%?
Rubens Barbosa

Sim. O Furlan (Luiz Fernando, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio) e eu lançamos um programa de promoção de exportações do Brasil nos EUA. O empresariado precisa se mexer. O mercado americano é o maior do mundo. Eles importam US$ 1,4 trilhão. Se a China conseguiu passar de US$ 7 bilhões para US$ 140 bilhões, temos um caminho enorme para desbravar em áreas não conflitivas.

ISTOÉ – Quer dizer que se pode ampliar as exportações sem a Alca?
Rubens Barbosa

Sim. O comércio Brasil-Estados Unidos em dez anos vai dobrar, triplicar, com ou sem Alca.

ISTOÉ – A brutal diferença no crescimento das exportações de China e Brasil significa que o País dormiu no ponto nos últimos 17 anos?
Rubens Barbosa

Passamos por uma série de problemas: vários planos econômicos, moratória, percalços com o câmbio, custo-Brasil. Um conjunto de fatores que justifica. As empresas, aqui, estão habituadas a esperar o comprador, em vez de ir atrás. Se baseiam mais no mercado doméstico que no mercado externo. Tudo isso junto explica essa baixa performance brasileira no comércio com os EUA. Há 15, 20 anos, tínhamos mais de 1% do mercado americano. Hoje, com US$ 15 bilhões, temos 0,9%. A nossa idéia é ampliar a cooperação em áreas que não são restritivas e em que somos competitivos.

ISTOÉ – Onde há mais espaço para ampliar o comércio: Estados Unidos ou União Européia?
Rubens Barbosa

É mais fácil ampliar as exportações no mercado americano, onde 67% do que vendemos são produtos industrializados. Estou falando de aviões, celulares, automóveis, produtos químicos, com valor agregado, importantes. No caso da União Européia, cerca de 65% das nossas exportações são de produtos primários há muitos anos. Para a União Européia não se tem fluxo, tradição de exportação de industrializados como há no caso dos Estados Unidos. Será preciso grande esforço para criar canais que, nos Estados Unidos, já existem.

ISTOÉ – Não há o risco de um aumento nas exportações provocar reações americanas?
Rubens Barbosa

Essa é uma questão importante. Há estudos nos EUA mostrando uma tendência de eles utilizarem os mecanismos de defesa comercial, que são legais, previstos na OMC, como medidas protecionistas. Fizeram isso no caso do aço, em que a legislação foi usada para proteger grandes empresas siderúrgicas em Estados que votaram com os republicanos. Temos que evitar que isso aconteça. O Brasil está atento.