No princípio, foi o tremor. Às 8h30
da manhã de sábado 8, um violento
terremoto de 7,6 graus na escala
Richter atingiu o sul da Ásia, com epicentro
na região da Caxemira, 100 quilômetros ao norte de Islamabad, capital do Paquistão. Depois, o terror. A área atingida é uma das mais pobres do país, uma região montanhosa cheia de construções precárias em lugares de difícil acesso. Milhares de pessoas ficaram soterradas e muitas delas gritavam em busca de socorro. Na ausência de resgate, alguns sobreviventes, cidadãos comuns, cavavam os escombros na vã esperança de salvar os soterrados pela avalanche de pedras, terra e entulhos. Finalmente, veio o caos: a demora no resgate foi agravada por chuvas torrenciais, levando multidões de famintos a saquear os poucos caminhões de ajuda humanitária. O cheiro de corpos em decomposição tomou conta de muitas cidades e as autoridades temem a propagação de epidemias. A dimensão da tragédia levou o governo do Paquistão a solicitar ajuda internacional, inclusive à sua inimiga histórica, a Índia, com quem o país já foi três vezes à guerra e até hoje lhe disputa a região da Caxemira. Calcula-se que entre 30 mil e 40 mil pessoas podem ter morrido e outras 50 mil tenham ficado feridas. Na Índia, também atingida pelo abalo sísmico, cerca de mil pessoas morreram. Acredita-se que 2,5 milhões de paquistaneses estão desabrigados. Grande parte das vítimas eram crianças. “Foi toda uma geração que se perdeu nas zonas mais afetadas”, disse o general Shaukat Sultan, porta-voz das Forças Armadas do Paquistão.

“A Caxemira transformou-se num cemitério”, lamentou o primeiro-ministro da região sob controle paquistanês, Sikander Hayat Khan. No epicentro do abalo, Muzaffarabad, capital da Caxemira, cerca de 70% das casas foram destruídas e pelo menos 11 mil dos 600 mil habitantes pereceram. “Os voluntários estão tirando as crianças mortas dos escombros, mas ninguém aparece para reclamar os corpos, o que indica que os pais também morreram”, constatou o general Sultan. Em Balakot, com cerca de 30 mil habitantes, três escolas desabaram e mil crianças ficaram soterradas. “Desde sábado, o dia terrível do terremoto, as pessoas ouviam adolescentes gritando por ajuda nas ruínas do colégio. Elas cavaram com as mãos, mas não conseguiram remover os escombros. Rezaram pela chegada da ajuda do governo, mas ela não veio. Ontem, o único adolescente que ainda dava sinais de vida permaneceu em silêncio. Agora, estão todos mortos”, narrou o jornalista Justin Huggler, do inglês Independent, em Bagh, onde 1.500 estudantes ficaram soterrados.

Debate – A tragédia aconteceu poucos dias depois do início do Ramadã, o mês sagrado para os muçulmanos. Segundo a tradição, foi nesse mês que o profeta Maomé teve suas revelações, transcritas depois para o Alcorão. Essa coincidência deixou muitos devotos atônitos, como Ramazan, que morava em Balakot. “É vontade de Deus que minha filha tenha sido levada, mas não posso aceitar a maneira como ela se foi”, lamentou. A angústia perplexa de Ramazan e de outros fiéis que perderam filhos, mulheres, maridos, irmãos, pais e amigos dessa maneira insólita em pleno Ramadã ecoa um debate travado há exatos 250 anos por dois dos maiores filósofos do Ocidente – Voltaire e Rousseau, expoentes do Iluminismo. A polêmica se seguiu a outra tragédia de proporções bíblicas, o terremoto que no dia 1º de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, destruiu Lisboa, então uma das mais importantes capitais européias, e matou cerca de 70 mil pessoas. Grande parte delas lotava as igrejas quando ocorreu o sismo e morreu esmagada pela destruição dos templos. Anticlerical, Voltaire (1694-1778) atacou a crença estabelecida perguntando como um Deus benevolente e onisciente poderia ter permitido semelhante tragédia, não poupando sequer crianças inocentes: “Que crime, que erro cometeram essas crianças/Esmagadas, sangrando sobre o peito de suas mães?”, indagava o filósofo no opúsculo Poema sobre o desastre de Lisboa. Seu colega Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que acreditava tanto na bondade natural dos homens quanto no bom Deus, respondeu, na Carta sobre a Providência, que nem Deus nem a natureza poderiam ser culpados pelo fato de que em Lisboa foram construídas milhares de casas frágeis e altas demais numa área muito pequena. Na opinião do autor de O contrato social, também alguns homens, na ânsia de levar seus pertences, foram os principais responsáveis por seus infortúnios.

Em Portugal, reações práticas tomaram o lugar de disputas filosóficas: o marquês de Pombal (1699-1782), o primeiro-ministro tido como “déspota esclarecido”, reconstruiu Lisboa em novas bases e aproveitou a deixa para expulsar a ordem dos jesuítas, que dominava a vida cultural do país e, depois do terremoto, dizia que a catástrofe tinha sido causada pela impiedade dos homens. De quebra, Pombal cortou a cabeça da aristocracia contrária ao seu programa reformista. Mas aqueles eram tempos otimistas, apesar de desditas como o terremoto de Lisboa. Hoje, poucos acreditam que catástrofes como o tsunami na Ásia, o furacão Katrina ou o terremoto no Paquistão possam afetar a soberba e a percepção tacanha de certas elites dirigentes. Azar dos miseráveis, condenados na Terra a esperar pelos céus.