Não à toa o roqueiro baiano Raul Seixas era chamado de Maluco Beleza, pois até na hora da desconexão com a vida demonstrou senso de humor. Devorado por uma pancreatite, depois de exibir sintomas de total desilusão com a humanidade, Raul foi encontrado morto, numa manhã de sol do dia 21 de agosto de 1989, em seu apartamento na zona central de São Paulo, empunhando um bastão atlante. Trata-se de instrumento de magia feito pelo seu grande amigo José Roberto Abraão, a quem dedicou a música Carpinteiro do universo, faixa do álbum A panela do diabo, realizado em parceria com Marcelo Nova, ex-vocalista do grupo Camisa de Vênus. Último testamento da veia criativa e ácida
do cantor e compositor, o disco foi um evento para os raulmaníacos.
E claro que a irreverência do roqueiro também saltou durante a
coletiva de imprensa de lançamento. Na ocasião, Raul compareceu vestindo um prosaico e caretíssimo pijama de flanela creme com
listrinhas marrom claro.

Tanto o bastão quanto o comportado pijama estão hoje nas mãos de Sylvio Passos, fundador do Raul Rock Club, o fã-clube oficial do cantor e compositor. As relíquias podem parecer macabras. Mas para os admiradores de Raulzito guardam a mesma necessidade sentimental que os fãs de Elvis Presley têm de visitar a mansão Graceland, em Memphis, onde o Rei do Rock morreu em 16 de agosto de 1977. Ciente desta relação apaixonada, afinal ele vive de e para a memória do ídolo, Passos decidiu reunir os objetos que já possuía, saiu à cata de outros mais, fez uma coleção e agora vem realizando exposições itinerantes nas quais exibe 70 itens de memorabilia, acrescidos de uma centena de fotos cobrindo todas as fases da vida e carreira do autor de Metamorfose ambulante. Datas especiais para realizá-las nunca faltam. Para os fãs, todo dia é dia de festejar Raul Seixas, o único artista brasileiro que ainda consegue agradar gente de todas as classes sociais e culturais, com leituras bem diversas de suas letras, interpretadas objetivamente ou no subtexto. Neste sábado 28, ele completaria 58 anos. Num link com a ocasião, a gravadora Som Livre está colocando na praça o CD Anarkilópolis, título de uma canção quase inédita que puxa o disco de repertório selecionado por Passos em conjunto com Kika Seixas, quarta e penúltima mulher do roqueiro e uma das responsáveis pelo seu espólio.

Quase inédita porque, na verdade, é a primeira versão de Cowboy fora da lei, cujo título original era Cowboy 73. A música deveria fazer parte do álbum Metrô linha 743, de 1984, mas por problemas de gravação não foi incluída. O hoje conhecido refrão estava pronto desde 1973. No entanto, só virou sucesso quando integrou a versão final da canção, gravada no LP Uah-bap-lu-bap-lah-béin-bum!, de 1987, expressão que remete ao grito primal do rock, perpetrado pelo americano Little Richard. Encontrada em outubro de 2002 nos arquivos da gravadora, a fita foi uma festa para os técnicos que passaram dois meses trabalhando sobre ela. O resultado traz à tona a conhecida verve de Raul numa letra divertidíssima sobre a emancipação da cidade fictícia de Anarkilópolis. Por sugestão de Passos, as outras 13 faixas reúnem canções nas quais há participações especiais de gente como Jackson do Pandeiro, Wanderléa, Roberto Frejat e André Cristovan. Prova da miscigenação musical de Raul Seixas.

Diário – A seleção de Silvícola, como era chamado por Raul, é de alguém que realmente conhece o trabalho do artista. Não é uma daquelas coletâneas que trazem Gita, Sociedade alternativa ou Mosca na sopa. Sylvio Passos também guarda e passa para frente informações preciosas sobre a vida e obra do roqueiro. Sua exposição é prova. Por onde arma seu circo organiza as fotos em ordem cronológica e com legendas. Cada objeto conta sua história. “O cara que é fã, entra e se emociona. Os outros aprendem sobre Raul”, diz Passos. Entre os itens de colecionador, há um diário datado de 1959 no qual o Carimbador Maluco anotava desde problemas com donos de botequim até esboços de letras.

Apaixonado por cinema, aos 14 anos já computava 50 filmes assistidos. Mais tarde resolveu anotá-los de acordo com seus atores preferidos, Gregory Peck, Burt Lancaster e Anthony Quinn. Também selecionava provérbios. “Quem se humilha será exaltado e… quem exalta será humilhado”, escreveu numa das páginas. Mas a curiosidade encontra-se sob o título “Coisas que eu penço (sic)” – “Quem se desculpa se culpa. Quer dizer que eu piso o pé de uma pessoa sem querer, eu me desculpo… eu estou me culpando? Não! Está errado esse ditado, às vezes nós temos de se desculpar de algo que fez sem querer.” Como se vê, o pensamento anárquico começava a se esboçar até ir ganhando forma, na década de 1970, com a letra de Anarkilópolis, cidade fictícia onde impera a violência e a bandidagem. Qualquer semelhança com a atual realidade brasileira é mera coincidência.
 

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