Maio de 2000 – Cerca de 100 moradores da favela Pavão-Pavãozinho, na zona sul do Rio, descem o morro para protestar contra a violência policial. Ônibus e carros que passam à noite pelas ruas próximas, em Copacabana, são depredados com paus e pedras. As portas das lojas são forçadas a pontapés e pauladas. O motivo da revolta foi o confronto entre a PM e os traficantes do local, que resultou na morte de cinco pessoas. Segundo a polícia, todas as vítimas eram traficantes. Os moradores do morro desmentem.

Dezembro de 2001 – Moradores do Pavão-Pavãozinho e da vizinha favela do Cantagalo participam de reuniões com representantes da Polícia Militar, instalada no local há um ano e três meses. Líderes comunitários e a PM agora decidem em conjunto a estratégia de policiamento. Com isso, o número de homicídios nas duas favelas baixou a zero, e não se vêem mais traficantes armados passeando pelas vielas. "A polícia passou a respeitar a gente, nos sentimos mais seguros", elogia Luiz Bezerra, vice-presidente da Associação de Moradores do Cantagalo.

O contraste que salta aos olhos entre os dois momentos das favelas do Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo iniciou no momento em que o Grupamento de Policiamento em Áreas Específicas (Gpae), da PM do Rio, começou a atuar no local. No início, os policiais, sob o comando do major Antônio Carlos Carballo, eram vistos pelos moradores como inimigos que agrediam inocentes e facilitavam o comércio dos traficantes em troca de propina. Hoje, os 118 PMs são respeitados por boa parte da comunidade. Para isso, os soldados receberam noções de direitos humanos, relacionamento interpessoal, filosofia do policiamento comunitário e história das comunidades populares. "Meus objetivos são a preservação da vida e a garantia dos direitos individuais, mas sem abrir mão da ação policial repressiva", explica Carballo. Tarefa difícil. "Tive de afastar cerca de 60 soldados. Alguns pegavam drogas com os traficantes para consumo próprio ou para vender", conta. Nos nove meses que antecederam ao início da atuação do Gpae ocorreram dez homicídios nas duas favelas. Desde setembro de 2000, nenhum caso foi registrado.

Iniciativas como essa, que procuram aproximar o policial da comunidade, já existem em 14 Estados. Desde 1993, o Espírito Santo conta com a Polícia Interativa, atendendo a 70% dos municípios. Em Santa Catarina, mais de sete mil soldados já foram treinados para essa interação. Em São Paulo, há uma experiência de parceria entre polícia, moradores e empresários em 42 Bases Comunitárias de Segurança. Cerca de 16 mil oficiais e praças já passaram por cursos multiplicadores ou estágios de polícia comunitária. Não se tem a ilusão de que apenas essas iniciativas possam reverter o triste quadro da segurança pública no País, até porque as condições sociais que fazem aumentar a criminalidade continuam as mesmas. Mas, a julgar por essas experiências localizadas, é possível recriar o perfil das polícias e voltar a encarar esses homens como autoridades parceiras do cidadão, e não mais como bandidos fardados.

Mas o coronel da reserva da PM José Vicente da Silva Filho, pesquisador do Instituto Fernand Braudel, de São Paulo, faz um alerta: dar aos policiais noções de cidadania e direitos humanos não é suficiente para baixar os índices de criminalidade. "Fizemos uma pesquisa que acompanhou a experiência paulista de policiamento comunitário e constatamos que nessas áreas a violência cresce menos, mas não deixa de crescer", afirma. O coronel diz que é necessário também qualificar o policial para uma atuação estratégica, baseada em estatísticas, e não em mera improvisação. Ele destaca que as condições de trabalho e a remuneração dos policiais são muito ruins. "Os soldados ainda são submetidos aos desmandos da hierarquia militar. Esses fatores acabam levando os policiais a resistir aos esforços de humanização", avalia.

A cientista política Reginete Bispo, diretora do Departamento de Recursos Humanos da Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Rio Grande do Sul, acredita na eficácia das experiências que envolvem os policiais na defesa da cidadania. Desde 1999, ela desenvolve com integrantes da PM gaúcha um trabalho em que passa aos soldados matérias como antropologia, direitos humanos, abordagem sócio-psicológica da violência e história dos movimentos sociais "Os policiais estão abandonados à própria sorte. Quando assumimos, encontramos homens completamente despreparados para esse quadro de complexidade social", diz ela. Reginete aposta que esse trabalho de humanização seja mais importante do que a aquisição de novidades tecnológicas. "Um policial munido de alta tecnologia e que não sabe o que fazer com ela é muito perigoso. Por isso, precisamos cuidar do homem." Enquanto a criminalidade continua crescendo empurrada pela exclusão social, representa um alento a mera perspectiva de que a polícia possa voltar a estar – de verdade – ao lado do cidadão.

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