Como uma linha pontilhada, dessas que indicam onde se corta o papel, um risco de barro avermelhado rasga de alto a baixo o morro da Rocinha. Ele surgiu lá em cima, anos atrás, quando a favela conquistou mais uma encosta, debruçando-se no alto do Morro Queimado sobre a Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro.

Antes, vieram casas recém-construídas, ultrapassando o cabo de aço que demarcava a fronteira definitiva entre as construções irregulares e a mata. Mas na época a prefeitura botou aquilo lá e saiu. Nas suas costas e à frente de todo mundo, a Rocinha escalou o cocoruto, meio camuflada entre as árvores.

Com o tempo, os quadrados de alvenaria ficaram cada vez mais despidos de vegetação. À distância, as casas parecem sólidas, feitas para ficar. Mole é o terreno pendurado a seus pés. As feridas cavadas pelas chuvas surgiram, logo abaixo das janelas, voltadas para a vista do Corcovado e da lagoa Rodrigo de Freitas, com o mar ao fundo.

Assim como dali se enxerga longe, a cidade lá embaixo pode vê-las até de outros bairros. Mas para todos os efeitos práticos ninguém notou quando, nos temporais de abril do ano passado, o barranco começou a escorregar ladeira abaixo, derretendo em direção a outra favela que cresce, sob a Rocinha, em torno do Parque da Cidade.

Ali o poder público instalou informalmente, lá vão muitas décadas, jardineiros e outros funcionários, contratados para conservar o parque. E assim a Vila Parque vingou num terreno do falecido Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal, antepassado do Ibama. Tudo isso no lugar onde um certo João Alves da Silva Porto cultivava no começo do século XIX sua chácara, que ia da Gávea até as Paineiras, na Floresta da Tijuca.

Mais tarde, a propriedade passou pelas mãos do político José Antonio Pimenta Bueno, que foi juiz, deputado, ministro e presidente de duas províncias, além de sócio do Barão de Mauá em ferrovias. Era o Marquês de São Vicente, que Pedro II mais de uma vez visitou em casa.

Em 1889 a chácara foi parar na massa falida do arquiteto Antonio Teixeira Rodrigues, o Conde de Santa Marinha. Como empreiteiro, o conde havia quebrado na construção de Belo Horizonte. E a chácara ficou com o credor, a Casa Teixeira Borges, grande atacadista da rua do Rosário, no velho centro do Rio de Janeiro.

Ela virou parque público em 1939, comprada pela Prefeitura do Distrito Federal, na antiga capital da República. Pertencia ao industrial Guilherme Guinle, que recebia naquela casa o presidente Getúlio Vargas. O chalé ainda meio rural, que servira de residência a alguns dos homens mais ricos do Brasil, virou Museu da Cidade. Seus jardins de canteiros afrancesados foram reflorestados à moda nativa por seu primeiro diretor, o futuro primatólogo Adhemar Coimbra Filho, a quem o mico-leão-dourado e outros macacos raros devem o fato de ainda estar aqui. As madeiras de lei do Morro Queimado foi Coimbra quem plantou.

Mas isso e as melhores peças do museu o público não vê. O acervo está emprestado a outros museus ou entulhando, em condições precárias, o depósito da reserva técnica. Quem hoje sobe a Gávea pela rua Marquês de São Vicente, embicando para o portão do parque pela rua Santa Marinha, segue contra a corrente o rio da história.

É o que dizem os nomes nas placas de rua. Ou seja, quase nada. Visível no presente é o barranco desmoronado, unindo ou ameaçando duas favelas cariocas. E uma nesga de futuro, anunciado pelo desastre que espera a hora de chegar à primeira página dos jornais, num verão qualquer que mais dia, menos dia, virá por aí.