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Turistas num Cadillac antigo e a chegada de um voo de Miami: em Havana, o primeiro mundo é comprado com peso convertível

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O caminho dos cubanos rumo à economia de mercado não é mais uma balsa com destino a Miami. O passaporte que conduz os habitantes da última ilha socialista das Américas ao mundo globalizado circula livremente pelo país. É o peso convertível, uma contrafação estatal para o dólar americano.

No câmbio fixo obrigatório para qualquer estrangeiro que desembarque em Havana, ele vale US$ 0,80 e oferece a oportunidade de comprar eletrodomésticos, alimentos, bebidas e roupas importadas. Quem tem peso convertível também pode ter carro novo (as marcas japonesas, alemãs, francesas e coreanas dominam o mercado) e usar os serviços reservados aos turistas de fora – hospedagem em hotéis cinco-estrelas de cadeias internacionais e restaurantes privados, aqui chamados de paladares por causa de uma novela da Rede Globo.

A grande maioria dos cidadãos, no entanto, vive com salários em peso cubano, que pagam os ônibus e os produtos da cesta básica descritos nas cadernetas de racionamento. Para eles, a grande questão é como conseguir um peso convertível. Há duas semanas, um diplomata sul-americano relatou à ISTOÉ que precisou trocar o motor da geladeira de sua casa em Havana. O funcionário da oficina estatal informou que havia uma fila a ser respeitada e que levaria cerca de cinco ou seis dias para fazer o serviço.

O cliente lamentou a demora e ouviu então a proposta de substituir o motor naquela mesma noite, fora do horário de expediente. Desde que o funcionário fosse remunerado com peso convertível. "Ele explicou que estava juntando dinheiro para comprar uma televisão de 29 polegadas", contou o diplomata.

Com 11 milhões de habitantes e o turismo como principal fonte de divisas, Cuba é uma sociedade que parece dividida pelo tempo. Uma parte dela, solidária e prestativa, segue socialista, mas parece estancada na década de 1960. Mora em apartamentos e casas carentes de uma mão de tinta, com fachadas consumidas pelos 50 anos de revolução e embargo econômico imposto pelos Estados Unidos.

A outra parte, que também se diz socialista, é a dos pesos convertíveis. Mais flexível, jovem e ambiciosa, reivindica um país menos fechado ao mundo. Pelo fácil acesso à moeda dos sonhos, as autoridades, os militares e aqueles que trabalham nas Embaixadas, com turismo ou nas empresas estrangeiras se tornaram uma espécie de cidadãos convertíveis. A essa elite se juntam os cubanos que têm parentes vivendo no Exterior, principalmente nos Estados Unidos, e que recebem ajuda financeira de fora da ilha. A sociedade convertível trabalha em modernos espigões de vidro e concreto erguidos à beiramar. Mas boa parte ainda vive nas mesmas casas de fachadas esmaecidas e também dentro do comitê central do Partido Comunista.

Premida pela falta de meios, sua revolução é mais teórica que prática. "Depois do colapso da União Soviética, aprendemos que a propriedade social não é necessariamente estatal", disse um dirigente da União de Jornalistas de Cuba, durante reunião na sede da entidade, na tarde da terça-feira 7. Trata-se de uma opinião manifestada sob a condição do anonimato, uma vez que a precária globalização cubana ainda não oferece meios para garantir a liberdade de expressão.

"Nosso maior dilema está na falta de acesso às novas tecnologias", disse Miguel Goméz, professor de jornalismo na Universidade de Havana, ao se referir aos principais problemas da mídia em Cuba. "Nossa internet é limitada, não temos acesso às tevês por satélite e nem cabos de fibra óptica que permitam velocidade às informações", afirmou.

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Carros novos e os arranha-céus de empresas estrangeiras: concessões forçadas num país que estatizou até os táxis

Os cubanos do socialismo e os da globalização idolatram igualmente os líderes revolucionários, como Fidel Castro e Che Guevara. Por conta deste apoio, o regime, que no início da década de 1960 estatizou até os táxis, nega oficialmente a divisão social de Cuba. Mas, além das lojas e dos serviços em pesos convertíveis, o Estado reconhece indiretamente a divisão em outras situações cotidianas, como no caso das diferenciações da frota de automóveis.

Ela é dividida em seis cores de chapas diferentes: azuis para pessoas jurídicas, preta para diplomatas, vermelha para turismo ou aluguel, verde para Forças Armadas, branca para autoridades e amarela para proprietários locais. É assim, aos poucos e sem abrir mão do controle, que o Estado começa a liberar a sociedade do seu antigo sectarismo para os tempos globais.

A partir de agora essa mudança deverá ganhar velocidade. Na segunda-feira 13, o presidente americano, Barack Obama, autorizou os cubanos residentes nos EUA a viajar à ilha quando bem entenderem. Antes, só podiam ir uma vez por ano. Obama também liberou, sem restrições, o envio de dólares a parentes de até segundo grau. Antes limitada a US$ 1.200 por ano, a nova medida certamente irá ampliar o número de cubanos convertíveis e aumentar a distância que os separa daqueles que seguirão em pesos tradicionais.

Na maior brecha aberta até agora no embargo econômico imposto há 48 anos, o presidente americano permitiu a remessa de telefones celulares, computadores e antenas. E assegurou a empresas de telecomunicações americanas o direito de instalar ligações por satélite e cabos de fibra óptica na ilha caribenha. As medidas parecem confirmar a convicção dos cubanos de que o fim do embargo está próximo. Ainda são muitos os cartazes antiamericanos espalhados pelas ruas de Havana, mas no Comitê Central do Partido Comunista, que se reunirá em dezembro, a eterna intransigência de Fidel em relação aos Estados Unidos sofre contestações. Seus companheiros de Sierra Maestra estão mortos e os que permanecem ativos somam mais de 80 anos de idade.

As gerações pós-revolução, com poder de decisão no Partido, são favoráveis à aproximação. O mesmo vale para Obama. Os anticastristas que deixaram suas mansões para migrar para a Flórida em 1959 também estão com idade avançada e muitos já morreram. Seus filhos enxergam a ilha como uma boa oportunidade de negócios.

Assim, o pacote da Casa Branca foi comemorado com euforia pelos exilados de Miami e ecoou entre os cubanos que desejam se integrar ao novo tempo. Prova disso foram os dois pronunciamentos de Fidel em menos de 24 horas. No primeiro, tratou as medidas americanas como "esmolas" e disse que Cuba nada aceitaria que não fosse o final do embargo. No segundo, amenizou e disse que o pacote anunciado pela Casa Branca era "um ato positivo, mas mínimo". Fidel recuou para entrar em sintonia com o que se passa nas ruas de Havana. O processo de conversão não tem mais volta.

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