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DEMOCRACIA Sarney, Lula e Mendes na assinatura do pacto: juntos para impedir bisbilhotices autoritárias

O delegado Protógenes Queiroz confirmou, em depoimento recente, a montagem de um sistema paralelo de investigações na Polícia Federal, com o auxílio de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Também garantiu que os arapongas envolvidos na Operação Satiagraha agiram ao arrepio da lei, mas com pleno conhecimento de seus superiores na PF e até mesmo do Palácio do Planalto. Essas declarações não podem cair no vazio. Ou Protógenes está delirando ou ele é o cabeça de um esquema ilegal que merece ser imediatamente devassado. Qualquer pessoa que tenha acesso às peças ficcionais produzidas nas investigações tortuosas de Protógenes constata que elas são um retrato fiel do Estado policialesco que se instalou no País. Não se trata de um exemplo isolado de abuso de autoridade. O momento é grave e ameaça os direitos da cidadania. Mas, pelo bem da democracia, os titulares dos Três Poderes firmaram, esta semana, o II Pacto Republicano, que tem exatamente o objetivo de dar um basta a esta anarquia autoritária. Já era tempo. "Os métodos de atuação da polícia são fundamentais para o respeito aos direitos humanos e à qualidade das provas", destacou o presidente do Senado, José Sarney.

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Firmado pelo presidente Lula, o senador José Sarney e os presidentes da Câmara, Michel Temer, e do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o II Pacto Republicano pretende diminuir a lentidão da Justiça, dar aos mais pobres acesso aos tribunais e, acima de tudo, conter o abuso de autoridade. O I Pacto Republicano destinou-se à reforma do Judiciário. A segunda versão nasceu da revolta do ministro Gilmar Mendes com os excessos cometidos na Operação Satiagraha. Algumas medidas têm como alvo as ações cinematográficas da PF. No rol de propostas, há medidas para controlar as escutas telefônicas, sobre o uso de algemas e os pedidos de prisão preventiva. Dois dos projetos considerados prioritários – o que pune o abuso de autoridade e o que tipifica os crimes de milícias – são de autoria do deputado Raul Jungmann (PPS-PE). "Hoje há uma resistente politização do aparelho policial, com acordos entre policiais, alguns juízes de primeira instância e alguns procuradores", acusa Jungmann. "Muitas vezes atuam ao arrepio do ordenamento legal, do Estado de Direito." De agora em diante, os prejudicados poderão processar diretamente delegados, membros do Ministério Público e magistrados. Hoje os processos contra autoridades passam pelo Ministério Público, que muitas vezes é uma das partes. Pelo projeto de Jungmann, a ação será privada, como no caso de crimes contra a honra.

O secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, considera urgente aprovar as novas regras que submetam a investigação policial à Constituição: "A legislação hoje não dá instrumentos para o cidadão se proteger do abuso de autoridade", diz. O pacto também foi recebido com euforia pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, que é um crítico severo da falta de controle sobre os métodos de investigação da PF e de parte do MP. Britto se mostra preocupado com ações policiais que invadem a privacidade dos investigados e adverte que o acesso indiscriminado a informações íntimas, que não são anexadas aos inquéritos, abre caminho para o crime de extorsão e para injustiças, o que faz lembrar os dias mais sombrios do regime militar. "Não se pode dar carta branca para que se bisbilhote a vida dos brasileiros", diz o presidente da OAB. "O Brasil saiu recentemente de uma ditadura em que o Estado tudo bisbilhotava. Não podemos permitir que a bisbilhotice seja a regra da investigação."

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AFASTADO Atuação política de Protógenes custou-lhe o cargo

Nos últimos tempos, a Polícia Federal saiu completamente de controle e não faltam exemplos. Os resultados dessas investigações apressadas e ilegais não merecem nenhuma credibilidade. A Satiagraha, comandada por Protógenes e avalizada pelo juiz Fausto De Sanctis, foi tão pródiga em desvios que a própria polícia teve de refazer investigações. A Corregedoria da PF em São Paulo encontrou no computador de Protógenes um relatório apócrifo, em papel timbrado da Diretoria de Inteligência Policial, que traz acusações infundadas e insensatas a torto e a direito. O relatório mostra que Protógenes investigou sem autorização judicial 25 jornalistas de vários veículos de comunicação para "consumo pessoal", jargão que os policiais utilizam para uso de material clandestino. Protógenes acusa os jornalistas de defender os interesses de Dantas e de receber "suborno" do banqueiro, sem nenhum elemento de prova, indício ou mesmo suspeita embasada. Agora se sabe que o delegado atuou como atuou porque tinha um projeto político. Com a notoriedade que ganhou, Protógenes aproximou-se do PSOL e já está em campanha aberta para um cargo eletivo. Por essas e outras, responde a um inquérito na PF por vazamento de informação na Satiagraha e foi afastado de suas funções. Ele pode ser demitido ainda neste semestre. "Eu acho que ele vai concorrer, sem dúvida, pelo PSOL, mas é um exibicionista", atacou o deputado Ciro Gomes (PSBCE). "O bom delegado não é o que fala, é o que investiga com profissionalismo." Já De Sanctis responde a processo administrativo.

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AMEAÇADO De Sanctis ainda não se livrou de processo administrativo

Outro exemplo de excesso policial que deixou perplexas as autoridades de Brasília foi a denúncia completamente enviesada contra o diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Victor Martins, que é irmão do ministro da Secretaria de Comunicação, Franklin Martins. A investigação na ANP, se é que assim pode ser chamada, foi realizada por dois arapongas com origem nos quadros da PF. A intenção dos dois ainda é desconhecida até pela própria PF. Mas o resultado da bisbilhotice é tão raso que o procurador da República Marcelo Freire mandou de volta para a PF o inquérito que investiga o suposto esquema de fraude na distribuição de royalties de petróleo. O procurador não conseguiu entender o objeto da investigação, que não está claro no arrazoado feito pela PF. Para dilatar o prazo do inquérito, o delegado Cleyton Bezerra terá de apresentar argumentos mais convincentes ao procurador. O inquérito foi instaurado com base em notas de jornais, há um ano e quatro meses, e hoje acumula somente 29 páginas no volume principal. O procurador pediu à PF que identifique a origem do relatório sobre suposta fraude na distribuição de royalties.

As investigações ilegais da PF são um prato feito para as bancas de advogados e seus clientes. Mesmo os que teriam contas a pagar na Justiça acabam beneficiados pela anulação das provas. E em muitos casos pela nulidade de todo o processo. Agente da PF durante 27 anos, o advogado Celso Lemos, que defende um funcionário dos Correios, conseguiu demonstrar que houve "sobreposição" de escutas na investigação feita pela PF, fato comprovado pelo Ministério Público, que agora pede arquivamento da denúncia. Segundo o MP, um detalhado estudo realizado pela equipe de auditores constatou que, no âmbito da própria PF, há dois documentos retratando o mesmo diálogo, com interlocutores diferentes. "Na minha época a PF não cometia esses erros", diz Lemos. "Com a administração do Paulo Lacerda, a PF deu autonomia a alguns jovens delegados sem ponderação, que percorreram a via do franco entusiasmo." Os advogados Eduardo Ferrão e Paulo Baeta Neves também encontraram sobreposição de diálogos dos réus da Operação Navalha. Na mesma escuta, há dois nomes diferentes de prefeitos. Na defesa que entregaram ao STJ, os advogados apontam duas dezenas de falhas no inquérito.

O presidente da CPI do Grampo, Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), vai apresentar projeto de lei determinando que as escutas telefônicas só possam ser feitas a partir da existência de um inquérito já informado ao juiz. O prazo máximo da escuta, hoje indeterminado, será de seis meses. Itagiba também quer propor a criminalização da posse de equipamentos de escuta, com prisão em torno de três anos. Portar maleta de grampo será como portar arma, explica ele. Embora sua instituição seja o alvo preferencial do II Pacto Republicano, o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa, apoia as propostas em estudo. "Um pacto entre os Três Poderes só fortalece a democracia e as instituições", diz ele. "Regras sobre a atuação de órgãos do Estado geram mais transparência e segurança jurídica para o cidadão." Corrêa nega, porém, que a PF esteja fora de controle e que exista um Estado policialesco. Ele garante que em sua administração há um rígido controle judicial do MP sobre as escutas. Pelos cálculos da PF, 3% dos inquéritos hoje têm escutas autorizadas. Uma das determinações da direção da PF é investir na qualificação das provas. Parece, contudo, que a determinação de Corrêa ainda não chegou ao ouvido de todos os delegados da corporação.