07/07/2004 - 10:00
Você conhece o cantor e compositor carioca Maurício Alberto Kaiserman? Certamente conhece. Como muitos músicos de sua geração, Maurício Alberto tinha tudo para permanecer no anonimato. No final dos anos 60, ouvia Beatles e Johnny Rivers, enquanto cantava seu repertório em inglês em boates na noite carioca. Criou grupos dos quais ninguém mais se lembra, como The Thunders e Hangmen. Até que, no seu LP de estréia, no longínquo 1973, lançou Feelings. Nascia um mito chamado Morris Albert – a tradução quase literal para o inglês do seu nome de batismo. A música virou tema da novela Corrida do ouro, da Rede Globo, rodou a América Latina, transbordou pela Europa e, oito meses depois, desembocou nos Estados Unidos, transformando Morris em ídolo pop, o brasileiro que mais vendeu discos no mundo – 160 milhões de cópias. Frank Sinatra gravou Feelings, depois Johnny Mathis, Andy Williams, Dionne Warwick e as orquestras de Paul Mauriat, Ray Conniff e Percy Faith. Caetano Veloso incluiu o “clássico americano” em seu último álbum, A foreign sound e, descobriu-se agora, até Elvis Presley emprestou sua voz à canção. A gravação inédita do rei será lançada no fim do ano em um CD de memórias, justamente no ano em que Feelings celebra 30 anos. Morando na Itália, Morris acaba de desembarcar no Brasil, onde inicia na sexta-feira 9, no Scala, no Rio de Janeiro, uma turnê pelo País, para lançar o CD Moods, com músicas inéditas de várias épocas de sua vida. Vai tocar seus maiores sucessos, como Gonna love you more, que já foi interpretada por George Benson, She’s my girl, Conversation, Summer in Paris, Sweet loving man, Woman, que foi seu primeiro compacto e, claro, Feelings, como sempre no fim dos shows. Também homenageará ídolos, cantando What’s going on, de Marvin Gaye, (Sittin’on) the dock of the bay, de Otis Redding, e sucessos como Sunny e Unchain my heart. Em entrevista a ISTOÉ, Morris, hoje com 52 anos, o português enferrujado pelos 30 anos no Exterior, fala das saudades do Brasil, responde a acusações de plágio e cafonice e faz uma revelação: Feelings é sua garota de Ipanema, que compôs para uma paixão platônica. Ao contrário de Helô Pinheiro, a musa inspiradora de Vinicius de Moraes, a sua diva é uma “figura pública casada”, que não quer saber de fama.
Morris, Maurício, você escolhe. Os amigos me chamam de Maurício. Os fãs, de Morris.
Como a de todo adolescente. Estudava no Colégio Anglo-Americano, no Rio, tinha 15 anos e ouvia música o dia inteiro: Beatles, Antonio Carlos Jobim, Trini Lopes, Johnny Rivers, Stevie Wonder, The Platters, Temptations. Como todo garoto da época, queria montar uma banda. Em 1965, criei o The Thunders e em 1966 o Hangmen, que no ano seguinte inaugurou o Canecão (casa de shows no Rio). Foi meu primeiro contrato profissional. Fui morar um tempo nos Estados Unidos, para estudar, e na volta montei o Morris Albert Trio. Eu compunha e cantava em inglês, meus ídolos falavam inglês, eram a nossa influência, e eu falava bem a língua, meus avós eram ingleses. O engraçado é que até hoje tem gente que pensa que eu sou americano, apesar de desde o começo eu fazer questão de dizer que era brasileiro. Desde que fui embora do País, já são 30 anos no Exterior, faço questão que me apresentem em todo o mundo como cantor e compositor brasileiro. Me orgulho das minhas raízes, cantar em inglês não me transformou em um estrangeiro. Nunca troquei de passaporte, meu passaporte é brasileiro, estou até renovando agora.
A inspiração, essa é a verdade nua e crua, foi uma mulher, uma carioca linda. Tudo o que eu escrevo é alguma coisa que experimentei na vida, ou que
vi acontecer, ou que queria passar. Feelings tinha uma musa. Eu tinha 19 anos,
ela tinha 30, era uma atração platônica, não aconteceu nada. Nunca mencionei
seu nome.
De jeito nenhum, nem adianta insistir. Ela é uma figura pública até hoje. Eu era muito jovem, ela era muito comprometida. Esse amor durou muito na minha cabeça, não conseguia dizer que a amava, então escrevi. Me lembro bem. Estava em uma casa em São Paulo, preparando as músicas para o primeiro LP, era época do vinil, estava sozinho, chovia muito do lado de fora, eu não conseguia dormir. A letra veio de uma vez, direto em inglês. Feelings / Nothing more than feelings / Trying to forget my / Feelings of love (Sentimentos / Nada mais que sentimentos / Estou tentando esquecer os meus / Sentimentos de amor). Era o lado B do disco, não achei que fosse explodir. Mas a canção caiu como uma bomba, chegou logo ao topo da Billboard nos Estados Unidos, ficou no topo das paradas em 52 países do mundo. Virou uma coisa muito grande.
Nunca falei com ela, mas acho que sabe. Vamos mudar de assunto.
Eu sempre digo, onde quer que eu vá, que essa é uma musica brasileira porque foi feita por um brasileiro.
Uma honra imensa. Quando conheci Sinatra pessoalmente, eu disse a ele que estava muito nervoso porque ia começar uma turnê. Ele me disse uma coisa que nunca mais vou esquecer. Olhou pra mim, nos olhos, e falou assim: conserve o seu nervosismo, porque no dia em que você não se sentir mais nervoso no palco, você acabou. Tem que ficar nervoso mesmo, com medo antes de entrar no palco, é o melhor modo do músico se sentir vivo. O Elvis eu conheci quando estava me mudando para Los Angeles, lembro que ele queria me conhecer e ficou me esperando no escritório do meu empresário. É incrível para mim até hoje falar disso. Foi a coisa mais emocionante de minha vida. Saber agora que Elvis gravou Feelings foi uma surpresa genial. São todas interpretações muito diferentes, mas acho que a de Elvis vai ser especial.
Meu amigo, se eu tivesse a receita do sucesso você acha que estaríamos aqui todo esse tempo falando sobre Feelings? Não tem receita, é preciso trabalhar duro e ter sorte também, nem que seja a sorte de cair no ouvido das pessoas. O maior problema que o artista enfrenta hoje é poder chegar até o público. Se ele tivesse menos barreiras, o público poderia escolher melhor.
Música é música, não tem tipo, tem gosto. É errado colocar um rótulo numa canção. Ou você gosta dela ou não. Ou é sua praia ou não. Cafona, brega, melosa, não consegui ainda definir o que são essas coisas. Um amante de Van Gogh não pode dizer que Picasso é brega só porque é diferente. A identificação de tantas gerações com Feelings responde a tudo. .
Não ligo para a fama. A música vem sempre em primeiro lugar. Mas desde que voltei ao Brasil tenho sido saudado em todos os lugares onde passo.
Olha, eu trabalho pra burro. Não vivo de rendas. Tenho muitas obrigações, compromissos, tenho que continuar produzindo para viver. A vida tem que seguir, vou cantar até o fim da minha vida. Graças a Deus nasci muito bem, tive pais maravilhosos, nunca me faltou nada. E, sim, a música me deu algum conforto. Se sou rico? Não sei o que é ser rico, acho que nunca fui.
Todos nós vivemos esse problema, o George Harrison, o Roberto Carlos, todo mundo tem esse problema. Quase todo artista que alcança o sucesso encontra alguém pelo caminho dizendo que o filho é dele. Às vezes o golpe dá certo, às vezes não dá. O George Harrison perdeu My sweet Lord, logo ele. Isso acontece. Hoje metade do que eu ganho com a música vai para esse sujeito, que nunca vi na vida. O diabo é que existe mesmo semelhança, notas que se repetem, daí ele alegou similaridade. Mas não copiei ninguém. No fundo é uma coisa inútil, um fato que aconteceu para a mídia, mas o público só reconhece a mim. Feelings será sempre Feelings. E Morris, sempre Morris.
Não dá para compor um Feelings toda semana. De vez em quando, cruzo com alguém que me pergunta: quando você vai fazer outro Feelings?
Respondo que já fiz sete ou oito, só que com nomes diferentes: She’s my girl, Conversation, e por aí vai. Mas realmente é uma cruz. Essa cobrança foi um fardo por um tempo, mas resolvi esse problema com minha crise dos 40. Transformei Feelings em minha amiga.
Não, o Brasil me fez ser o que eu sou. É justo que lembrem mais do Chico (Buarque), do Caetano (Veloso) porque não cantei música popular brasileira. Mas isso
não é falta de reconhecimento. As pessoas se lembram
de mim pela minha música. Não tenho nenhuma razão para me sentir injustiçado.
A qualidade da música brasileira é indiscutível, hoje e sempre. É uma música única no planeta. Somos queridos como povo, em parte pela qualidade do som que produzimos. Muita gente no Brasil não sabe, mas grandes nomes da música internacional desembarcam todo ano no Brasil, ainda que anonimamente, para aprender com nossos sons e ritmos. Para tirar o conhecimento da música brasileira. E a gente nem sabe que eles vieram. A música brasileira é isso, fonte inesgotável onde o mundo inteiro bebe. Eles usam nosso modo de ser para fazer a música deles.
Voltei ao som da velha guitarra elétrica. No show toco blues, funk, o rock’n’roll dos bons e velhos tempos. No fundo, estou mostrando ao meu público algo conhecido com cara de novo. As pessoas vão ouvir velhas canções como se fosse pela primeira vez. Marvin Gaye, Otis Redding, só coisas boas.
A profissão é mesmo difícil, mas isso não pode servir como desculpa. A gente vê muitos casais do show business juntos há muitos anos. Quando as coisas não vão bem, não há o que fazer. É parte da vida.
As mudanças profissionais foram profundas, mas pessoalmente não mudei. Sempre fui uma pessoa muito sossegada, um sujeito família, nunca
fui muito de badalar. Não uso drogas, não jogo, bebo pouco, só uma cervejinha com os amigos. Não precisei lidar com a fama, ela é que teve que lidar comigo. Como tinha muitos compromissos, me mudei para a Califórnia. Mais tarde, vivi dois anos no Canadá, antes de me mudar novamente, agora para a Itália, onde estou há sete anos. Queria ter uma base na Europa. Escolhi a Itália pela latinidade, me sinto mais perto do Brasil. Sempre penso em voltar para cá, mas é difícil com todo o trabalho que eu tenho. Daqui a dois anos, quero passar pelo menos metade do tempo no Brasil.
Violência, desemprego, essas coisas existem em todo lugar do mundo, basta que seja uma metrópole para ter problemas. Passei muitos anos sem vir ao Brasil, mas está ficando cada vez mais difícil ir embora daqui. Tenho saudades de tudo, começando pelo ar, o ar do Brasil é diferente. E o Rio, pra mim, está no coração. Cresci na rua Barão da Torre, em Ipanema, depois morei na Gávea e no Leblon. A cidade é uma coisa maravilhosa, sem trocadilhos, ainda é. Quando me falam em violência, eu respondo que não é muito diferente em Nova York, Los Angeles, Detroit, Chicago, e até na Europa. No Brasil, no Rio, parece, as coisas ecoam mais. Mas nunca fui assaltado no Brasil, e não acho que ser assaltado deva ser encarado como parte do currículo de ninguém. Temos que fazer o País que queremos. A imagem que o brasileiro tem do seu País nada mais é do que a imagem que tem dele mesmo. Sei que está difícil para todos, não tem trabalho, não há muito sossego, mas não escolhemos o lugar onde nascemos, temos que gostar do que somos. Tenho uma filosofia de vida meio maluca de só acreditar no bem. O mal para mim não existe. Por isso, acredito nas pessoas, no País.
Todos querem ser eternos, de um jeito ou de outro. A coisa mais importante na vida de um homem é deixar alguma coisa, ser lembrado depois que se for. Eu deixei. Mas quero ir além, não quero parar nunca. Minha maior marca é ser brasileiro