Os Estados Unidos parece que mandaram às favas os chavões. Principalmente aquele que aponta a inimizade entre a pressa e a perfeição. Primeiro devolveram formalmente, na segunda-feira 28, a soberania do Iraque a representantes de um governo provisório encabeçado pelo presidente Ibrahim Jafari. Essa antecipação secreta de dois dias, é clara demonstração de que os insurgentes que lutam contra a presença estrangeira ditaram a agenda política. Ato contínuo, em 1º de julho, entregaram outra rapadura: o ex-ditador Saddam Hussein, que foi levado às barras de um tribunal iraquiano que o indiciou por crimes de guerra. Desafiante, num alinhado paletó cinza e calça marrom, barba bem aparada, o preso famoso não reconheceu a jurisprudência da Corte e declarou que “o criminoso real é o presidente George W. Bush”. Tanto a solenidade da passagem de poder quanto o ritual justicialístico cheiram a espetáculos de caráter eleitoreiro do ocupante da Casa Branca, que enfrentará as urnas em novembro próximo. Houve quem observasse que a exibição de Saddam ocorreu em horário nobre de audiência americana – quando os eleitores estavam ligados às imagens das tevês, antes do rush matutino.

A coreografia nos primeiros passos do julgamento de Saddam Hussein e mais 11 membros graúdos de seu círculo de poder dão indicações de como será este minueto. As tevês americanas não transmitiram o som nas imagens que mostravam. Somente a imprensa dos EUA terá oportunidade de entrar no tribunal. Algo que o público árabe já considerou censura típica dos tempos de reinado do réu. Há claramente uma tentativa de Washington de estabelecer uma corte especial para crimes de guerra – separadamente daquela que a comunidade internacional propõe. “A justiça será feita pelo povo iraquiano”, afirmou o presidente Bush neste primeiro dia de indiciamento. Mas a mão de Tio Sam está em todos os mecanismos desta justiça. Desde as investigações – feitas por agentes do FBI, passando pelo aconselhamento jurídico dos juízes, até a guarda dos prisioneiros. Desse modo, a palavra soberania não parece ser substantiva no Iraque. Tanto que Hussein ainda se proclama “presidente eleito” do país.

Os atentados diários – que na sexta-feira 25 ocorreram em cinco cidades fazendo 100 mortos – apressaram a passagem de comando. Duas horas e 40 minutos depois da secreta cerimônia, Paul Bremer estava fora do Iraque, país que desde maio passado ele comandou com poderes de ditador – conforme definiu seu aliado, o enviado especial da Organização das Nações Unidas, Lakhdar Brahimi. Houve quem, nos Estados Unidos, lembrasse da apressada saída do embaixador americano no Vietnã (1975), que tomou o helicóptero no teto da embaixada em Saigon, quando as forças do Exército vietnamita do norte já estavam na cidade. A comparação, porém, é exagerada. No caso anterior houve tomada de poder pelos nativos. Agora, os Estados Unidos ainda mantêm 160 mil soldados no Iraque, dão amparo estrutural e econômico, fazendo com que o conceito de “passagem de soberania” se pareça muito mais com jogada eleitoreira do presidente George W. Bush. Com sua popularidade caindo pelas tabelas – níveis de aprovação no baixíssimo patamar dos 41% de pesquisados pelo jornal The New York Times –, é preciso manter ilusões de que está havendo um distanciamento do atoleiro da ocupação. Saddam, quem diria, virou na marra, cabo eleitoral de Bush.