A vocação para o arbítrio é fácil, difícil é a vocação para a Justiça. Três PMs encontram o casal Roberto Carlos dos Santos e Natacha Ribeiro dos Santos num bar da periferia de São Paulo. Um dos PMs vê em Roberto Carlos o jovem que lhe devia R$ 5 mil, dívida de um “acerto” que esse PM fizera com o moço, para não levá-lo preso, quando ele fora pego certa ocasião com um cigarro de maconha. Por conta da dívida, no bar começa o espancamento – três contra dois, dos dois, uma é mulher. Debaixo de porrada, Roberto Carlos e Natacha são arrastados para um lava-rápido. Chegam mais três PMs. Por conta da dívida agora são seis contra dois – dos dois, uma é mulher. O casal é levado para a sua própria casa e mais quatro PMs desembarcam. Por conta da dívida, agora são dez contra dois – dos dois, uma é mulher. Enquanto os dez PMs batiam, despiam e ameaçavam sodomizar Natacha com uma garrafa de cerveja e fazer sexo oral com a moça, eles riam na fácil vocação para o arbítrio e não se lembraram que difícil, convicta e persistente é a vocação para a Justiça. Tão difícil que a cidadã Ivana David Boriero levou bomba no primeiro exame que prestou para se tornar juíza de Direito. Convicta e persistente na vocação para a Justiça e para a cidadania, Ivana estudou então 17 horas por dia, passou no segundo exame e hoje é a juíza corregedora do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária. Convicta na vocação de garantidora do Estado Democrático de Direito, com a mulher Ivana os dez PMs não podem. Ela apurou imediatamente toda a história, os dez estão presos. Roberto Carlos morreu na delegacia, e por ordem de outro juiz Natacha inexplicavelmente também está presa sem provas convincentes de associação com o tráfico – e se provas há, foram elas obtidas sob tortura. Natacha fez 20 anos no domingo 27, data em que o mundo comemorou o Dia Internacional Contra a Tortura. Ivana faz aniversário nesse domingo 4. Duas mulheres cancerianas, signo que abraça a dor dos outros como se fosse a sua própria dor. Natacha desespera-se com a morte do companheiro. Ivana pensa no corpo dos torturados como se fosse o seu próprio corpo.